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domingo, 9 de outubro de 2016

Miséria Humana



Uma das perguntas mais recorrentes à um escritor é o motivo de escrever, normalmente a resposta muda de acordo com a sinceridade ou fase em que o escritor se encontra. Quanto mais estabelecido na carreira, menos sincero. As pessoas não querem respostas cruas, secas, desprovidas da “poética” que acreditam envolver todos os atos de um escritor. Como sou praticamente desconhecido no Brasil, e meus leitores estrangeiros ainda tem que se valer de tradutores para ter acesso ao meu registro - e o fazem com mais afinco do que os que mais facilidades possuem -, posso ser extremamente sincero.
Escrevo por necessidade visceral, aquela do mesmo tipo que pessoas ditas normais sentem, como fome, desejo de sexo, desejo de convivência, sono. Felizmente meus rendimentos não são provenientes dos livros que vendo, são poucos os que conseguem sobreviver decentemente no Brasil fazendo isso, a grande maioria nem consegue pagar os custos das publicações e só o fazem para manter o ego, pelo tempo que conseguirem, como um vício caro que se é obrigado a deixar e que traz pouco, porém profundo, prazer.
No meu caso não é por “amar o que faço” ou essas mentiras que os escritores famosos dizem para agradar a mídia e o público, sempre em busca de positivismo. Minha necessidade de escrever é para tentar preservar o resto de sanidade que penso ainda possuir, apesar de, através da escrita, mergulhar cada vez mais nas profundezas da alma humana e lhes iluminar os segredos mais escondidos.
          Quando se nasce amaldiçoado pelas Musas, aquelas vadias gregas que regem as artes e os artistas de todos os tipos, tem-se uma sensibilidade extremada que nenhum antialérgico dá conta. Gasta-se fortunas, que na maioria das vezes não se tem - quase sempre as vadias escolhem os artistas pobres para atormentar - em psicoativos legais ou não, ou ambos, ou acaba-se cedendo de alguma forma. Fazer o que as Musas mandam alivia a compulsão por algum tempo, apesar dos danos que isso causa na alma.
          Até aí tudo bem, pode-se até ter um prazer nessa relação promíscua - Musas só te procuram quando estão com vontade, mas ignoram as suas vontades sempre que podem - e nunca acusei a vida de ser justa, mas há momentos em que as coisas ficam estranhas.
          Já me acusaram diversas vezes de justificar demais, mas tente considerar o que foi dito como uma introdução para o fato que aconteceu há alguns dias, quando estava caminhando por uma calçada no centro da cidade vizinha, com um objetivo bem definido - só costumo sair de casa com objetivos definidos, uma alma velha, como dizem alguns poucos amigos sinceros, com um sorriso condescendente - e vejo um desses “moradores de rua”.
Há uma necessidade de eufemismo contemporâneo para suavizar a culpa da sociedade de permitir que pessoas sejam tratadas como lixo não recolhido pelas instituições governamentais, que na maioria das vezes são as principais produtoras deste “resíduo” social. Estava o mendigo – gosto de termos arcaicos que são mais expressivos e sinceros - comendo com as mãos de um marmitex que alguém deve ter lhe dado em ato de caridade.
          As atitudes de um cidadão comum são automáticas diante de um quadro deprimente, real e imediato. Normalmente se ignora facilmente, como um grafite ruim em uma parede que não lhe pertence, mas que é tão comum na sociedade que construímos como tijolos em uma parede. Fica difícil apenas quando alguém resolve piorar a situação de forma insana. No caso foi uma velha – para o inferno os eufemismos contemporâneos – que olha para o marmitex e diz em alto e escroto som como a anunciar a vinda do novo advento: “O rango está bom, heim? Só costela!!”
          Instantaneamente o encanto das sombras da ignorância institucionalizada se quebra e sou obrigado a reparar na refeição, por outro ato automático, e vejo uma quantidade absurda de arroz com farofa, acompanhada de alguns pedaços do que parecia ser costela que servia apenas para enfeitar a superfície indigesta e tentar dar algum sabor. O olhar de escritor, sempre atento aos detalhes que saltam a vista para serem atropelados pelos pensamentos, me apresenta a velha com seu vestuário bem alinhado - nada que a tornasse um expoente da sociedade -, tentativa de disfarçar a inveja e a raiva que destilava em cima de alguém claramente bem abaixo da escala da dignidade social que lhe é devida apenas por ser da mesma espécie dos transeuntes.
          O pobre homem – não é um eufemismo, mas uma expressão do sentimento emocional de pena projetado sobre outro indivíduo - nem respondeu, continuou comendo tranquilamente com a indiferença aprendida. A memória me traz a imagem animada de um abutre a quem foram lançadas injúrias por um narrador invisível e que, do alto de sua complacente calma responde apenas que “paus e pedras podem quebrar meu corpo, mas palavras não me atingem”.
Dou-me conta depois de décadas que as palavras só atingem os que estão acima do nível mínimo de dignidade humana para possuir um ego, todos os que estão abaixo só se preocupam com coisas mais contundentes a sua escassa integridade. Não sou dos virtuosos, praticando o desapego das coisas materiais e a bondade diante das desigualdades do mundo, não se esqueça que há sinceridade neste texto e normalmente ela não é gentil. Quando sou ferido de alguma forma, procuro fazer uso da minha melhor arma, palavras que brotam firmes e cortantes contra o agressor.
          Parei em frente a velhaca desfilante – para o inferno com a regra contra adjetivações - e muito educadamente soltei um sonoro “Senhora, vá para o Inferno!!”.
Ela ficou muda diante do vocativo, provavelmente, então desviei de sua trajetória homicida e continuei no sentido oposto, ignorando risos dos que sentiram satisfação em ver pronunciada em palavras o que gostariam de ter dito. Não é essa afinal a “função” de um escritor? Dar voz aos que não sabem expressar os pensamentos de forma adequada?
Deixei algumas moedas na caixa de donativos - para a cachaça, drogas ou refeição futura, não me importa, donativos são oportunidades, não dívidas que se oferece a outro - e segui em frente. Não há orgulho em obter uma vitória de Pirro, não há nobreza em fazer parte de um mundo onde situações assim existem com naturalidade e, naturalmente, são ignorados.
          Se a outra, ou os que estavam com ela, fez ou disse alguma coisa não sei. Nem sei se o mendigo agradeceu ou não às moedas. Que fique claro que não fiz nada por ele, mas por mim. Me senti agredido com a violência contra alguém que estava já por demais violentado pela sua situação, e instintivamente reagi no mesmo tom e forma. Só sombras conseguem atravessar o lodaçal sem se emporcalhar no trajeto, aos outros resta apenas tentar se livrar da sujeira de forma que não contamine mais ainda o ambiente, tentando ficar um pouco mais limpos que a média.
          Não tenho a pretensão de mudar os corações e mentes, tornar o mundo melhor ou coisa que o valha. Se fosse tão fácil, não existiriam tantos escritores a inventar mundos imaginários para aventuras edificantes, as Musas teriam que procurar outros para atormentar com suas inspirações. Creio que isso seria terrível, porque o inferno deixaria de existir e não poderíamos sequer ter uma catarse em mandar para lá quem nos revela quão baixo pode chegar o nível de humanidade que também possuímos.

          Fora isso, está tudo bem por aqui, obrigado.

Danny Marks

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