Uma
das perguntas mais recorrentes à um escritor é o motivo de escrever,
normalmente a resposta muda de acordo com a sinceridade ou fase em que o
escritor se encontra. Quanto mais estabelecido na carreira, menos sincero. As pessoas
não querem respostas cruas, secas, desprovidas da “poética” que acreditam
envolver todos os atos de um escritor. Como sou praticamente desconhecido no
Brasil, e meus leitores estrangeiros ainda tem que se valer de tradutores para
ter acesso ao meu registro - e o fazem com mais afinco do que os que mais
facilidades possuem -, posso ser extremamente sincero.
Escrevo
por necessidade visceral, aquela do mesmo tipo que pessoas ditas normais
sentem, como fome, desejo de sexo, desejo de convivência, sono. Felizmente meus
rendimentos não são provenientes dos livros que vendo, são poucos os que
conseguem sobreviver decentemente no Brasil fazendo isso, a grande maioria nem
consegue pagar os custos das publicações e só o fazem para manter o ego, pelo
tempo que conseguirem, como um vício caro que se é obrigado a deixar e que traz
pouco, porém profundo, prazer.
No meu
caso não é por “amar o que faço” ou essas mentiras que os escritores famosos dizem
para agradar a mídia e o público, sempre em busca de positivismo. Minha
necessidade de escrever é para tentar preservar o resto de sanidade que penso
ainda possuir, apesar de, através da escrita, mergulhar cada vez mais nas
profundezas da alma humana e lhes iluminar os segredos mais escondidos.
Quando se nasce amaldiçoado pelas Musas, aquelas vadias
gregas que regem as artes e os artistas de todos os tipos, tem-se uma
sensibilidade extremada que nenhum antialérgico dá conta. Gasta-se fortunas, que
na maioria das vezes não se tem - quase sempre as vadias escolhem os
artistas pobres para atormentar - em psicoativos legais ou não, ou ambos, ou acaba-se
cedendo de alguma forma. Fazer o que as Musas mandam alivia a compulsão por
algum tempo, apesar dos danos que isso causa na alma.
Até aí tudo bem, pode-se até ter um prazer nessa relação
promíscua - Musas só te procuram quando estão com vontade, mas ignoram as suas
vontades sempre que podem - e nunca acusei a vida de ser justa, mas há momentos
em que as coisas ficam estranhas.
Já me acusaram diversas vezes de justificar demais, mas
tente considerar o que foi dito como uma introdução para o fato que aconteceu há
alguns dias, quando estava caminhando por uma calçada no centro da cidade
vizinha, com um objetivo bem definido - só costumo sair de casa com objetivos
definidos, uma alma velha, como dizem alguns poucos amigos sinceros, com um sorriso
condescendente - e vejo um desses “moradores de rua”.
Há uma
necessidade de eufemismo contemporâneo para suavizar a culpa da sociedade de
permitir que pessoas sejam tratadas como lixo não recolhido pelas instituições
governamentais, que na maioria das vezes são as principais produtoras deste “resíduo”
social. Estava o mendigo – gosto de termos arcaicos que são mais expressivos e
sinceros - comendo com as mãos de um marmitex que alguém deve ter lhe dado em
ato de caridade.
As atitudes de um cidadão comum são automáticas diante de um
quadro deprimente, real e imediato. Normalmente se ignora facilmente, como um grafite ruim em
uma parede que não lhe pertence, mas que é tão comum na sociedade que construímos
como tijolos em uma parede. Fica difícil apenas quando alguém resolve piorar a
situação de forma insana. No caso foi uma velha – para o inferno os eufemismos
contemporâneos – que olha para o marmitex e diz em alto e escroto som como a
anunciar a vinda do novo advento: “O rango está bom, heim? Só costela!!”
Instantaneamente o encanto das sombras da ignorância
institucionalizada se quebra e sou obrigado a reparar na refeição, por outro
ato automático, e vejo uma quantidade absurda de arroz com farofa, acompanhada
de alguns pedaços do que parecia ser costela que servia apenas para enfeitar a
superfície indigesta e tentar dar algum sabor. O olhar de escritor, sempre
atento aos detalhes que saltam a vista para serem atropelados pelos
pensamentos, me apresenta a velha com seu vestuário bem alinhado - nada que a
tornasse um expoente da sociedade -, tentativa de disfarçar a inveja e a
raiva que destilava em cima de alguém claramente bem abaixo da escala da
dignidade social que lhe é devida apenas por ser da mesma espécie dos
transeuntes.
O pobre homem – não é um eufemismo, mas uma expressão do
sentimento emocional de pena projetado sobre outro indivíduo - nem respondeu,
continuou comendo tranquilamente com a indiferença aprendida. A memória me traz
a imagem animada de um abutre a quem foram lançadas injúrias por um narrador
invisível e que, do alto de sua complacente calma responde apenas que “paus e
pedras podem quebrar meu corpo, mas palavras não me atingem”.
Dou-me
conta depois de décadas que as palavras só atingem os que estão acima do nível mínimo
de dignidade humana para possuir um ego, todos os que estão abaixo só se
preocupam com coisas mais contundentes a sua escassa integridade. Não sou dos virtuosos,
praticando o desapego das coisas materiais e a bondade diante das desigualdades
do mundo, não se esqueça que há sinceridade neste texto e normalmente ela não é
gentil. Quando sou ferido de alguma forma, procuro fazer uso da minha melhor
arma, palavras que brotam firmes e cortantes contra o agressor.
Parei em frente a velhaca desfilante – para o inferno com a
regra contra adjetivações - e muito educadamente soltei um sonoro “Senhora, vá para o
Inferno!!”.
Ela ficou muda diante
do vocativo, provavelmente, então desviei de sua trajetória homicida e continuei
no sentido oposto, ignorando risos dos que sentiram satisfação em ver
pronunciada em palavras o que gostariam de ter dito. Não é essa afinal a “função”
de um escritor? Dar voz aos que não sabem expressar os pensamentos de forma
adequada?
Deixei
algumas moedas na caixa de donativos - para a cachaça, drogas ou refeição
futura, não me importa, donativos são oportunidades, não dívidas que se oferece
a outro - e segui em frente. Não há orgulho em obter uma vitória de Pirro, não
há nobreza em fazer parte de um mundo onde situações assim existem com
naturalidade e, naturalmente, são ignorados.
Se a outra, ou os que estavam com ela, fez ou disse alguma
coisa não sei. Nem sei se o mendigo agradeceu ou não às moedas. Que fique claro
que não fiz nada por ele, mas por mim. Me senti agredido com a violência contra
alguém que estava já por demais violentado pela sua situação, e instintivamente
reagi no mesmo tom e forma. Só sombras conseguem atravessar o lodaçal sem se
emporcalhar no trajeto, aos outros resta apenas tentar se livrar da sujeira de
forma que não contamine mais ainda o ambiente, tentando ficar um pouco mais
limpos que a média.
Não tenho a pretensão de mudar os corações e mentes, tornar
o mundo melhor ou coisa que o valha. Se fosse tão fácil, não existiriam tantos
escritores a inventar mundos imaginários para aventuras edificantes, as Musas
teriam que procurar outros para atormentar com suas inspirações. Creio que isso
seria terrível, porque o inferno deixaria de existir e não poderíamos sequer
ter uma catarse em mandar para lá quem nos revela quão baixo pode chegar o
nível de humanidade que também possuímos.
Fora isso, está tudo bem por aqui, obrigado.
Danny Marks
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