Caro senhor, venho lhe falar sobre a sua empresa.
Para melhor executar a minha função, inscrevi-me em um
nível subalterno de forma que pudesse ter acesso a tudo que ocorresse nos
diversos níveis.
Foi imediata a constatação de que há um enorme vazio entre
os andares mais altos e os andares abaixo deixando praticamente interrompidas
qualquer via de acesso que não seja a de suprimentos (para cima) e ordens (para
baixo). Mesmo os andares abaixo
desse vácuo (quase) instransponível acaba por ter diversos conflitos internos
que, em uma análise mais rápida, parecem não conter uma lógica que os oriente.
Poderia afirmar que existem agrupamentos que funcionam em
um sistema mais ou menos organizado, que lutam violentamente contra outros
agrupamentos em uma competição sem tréguas (mas com muitos armistícios e
acordos, escondidos dos outros membros do próprio grupo) não apenas para
conquistar um lugar de direito, mas para serem os únicos detentores de direito.
Em alguns momentos esses grupos parecem mudar de lado, ou
de grupo, apenas para sabotarem o grupo alheio e montarem os seus próprios
grupos com filiados e simpatizantes reiniciando o processo.
Houve, por várias vezes, tentativas bem-sucedidas de
transpor o vácuo que os separa dos andares superiores, lançando para lá
representantes munidos de cordões que permitiriam estabelecer um canal
preliminar que neutralizaria o vácuo com a evolução dos contatos do alto com a
base. Mas o que acaba ocorrendo é que, tão logo os representantes se sentem
seguros, cortam os cordões com a base que os projetaram e se estabelecem em
novas bases.
Há os que se demoram a se ancorar e são puxados para o vácuo,
mas são poucos. A grande maioria até consegue a façanha de inverter os cordões
e, em vez de serem manipulados por eles, passam a manipular as bases através
deles, ampliando a complexidade dos acordos de topo.
Sim, mesmo no topo há conflitos muito fortes para manter os
interesses próprios (não da base ou da empresa) ao ponto de ameaçar até mesmo
os pilares do prédio quando as coisas passam dos limites. E quando percebem que
estão sendo observados através do vácuo, parecem ficar mais furiosos, mais
valentes, mais enfáticos nos seus discursos, como se tivessem sido eles que os
escreveram, e não os seus colaboradores, como chamam os que estão aquém do
vácuo e a uma ligação de prontidão.
Existem, é claro, os micro acionistas que mantém a empresa
funcionando com sacrifício que, apenas a eles, é exigido constantemente, seja
pelos que estão lá no alto, seja pelos que esperam alcançar, também, o alto.
Esses, além de contribuir com o dinheiro para manter a empresa funcionando,
ainda contribuem com os produtos que produzem (e que algumas vezes até
conseguem comprar para uso pessoal) e, por mais trapalhadas que as lideranças e
representatividades cometam, conseguem ludibriar todos e manter as coisas
dentro do esperado, ou quase.
Há um monte de desocupados ultimamente, gente que perdeu a
função por conta da turma para lá do vácuo, e que acaba sendo uma boa massa de
manobra para a outra turma que está por lá e que resolveu virar a mesa, chutar
o balde de champanhe e as telas de planejamento. Mas já entrou, pelo lado de
cá, a equipe de contingenciamento dando ideias de como montar suas próprias
equipes e... Bem, o senhor sabe, aquelas coisas de sempre.
Talvez alguns acabem se superando ou escapando para as
concorrentes, e outros retornem em algum ponto, ou posto, mas nada que não
tenha sido previsto anteriormente. Isso tem funcionado bem para conter os
custos de treinamento de alto nível, deixando que os interessados banquem seu
aperfeiçoamento, reinserindo-os em algum ponto do processo seletivo.
Como o senhor pode perceber, as mudanças de paradigmas
objetivadas e cuidadosamente implementadas ao longo do tempo, já estão fazendo
os efeitos esperados e até alguns inesperados, mas nada que realmente ameace o
controle efetivo que exerce, ou sua invisibilidade.
Anexo envio o relatório formal com todos os documentos
necessários para as próximas fases de execução. As planilhas com os desvios que
podem ser restituídos dos membros descartados e realocados para novos desvios
e, não menos importante, uma solicitação de café de boa qualidade.
Justifico esta última porque, além de servir, também faço
uso do mesmo e não me agradou o que havia no estoque, que foi devidamente
distribuído em todos os níveis para consumo.
Sem mais, despeço-me,
Auditora e moça do café
Nassua K. Ébon
(Danny Marks)