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terça-feira, 30 de agosto de 2016

Empreendimento S/A


          Caro senhor, venho lhe falar sobre a sua empresa.
          Para melhor executar a minha função, inscrevi-me em um nível subalterno de forma que pudesse ter acesso a tudo que ocorresse nos diversos níveis.
          Foi imediata a constatação de que há um enorme vazio entre os andares mais altos e os andares abaixo deixando praticamente interrompidas qualquer via de acesso que não seja a de suprimentos (para cima) e ordens (para baixo).          Mesmo os andares abaixo desse vácuo (quase) instransponível acaba por ter diversos conflitos internos que, em uma análise mais rápida, parecem não conter uma lógica que os oriente.
          Poderia afirmar que existem agrupamentos que funcionam em um sistema mais ou menos organizado, que lutam violentamente contra outros agrupamentos em uma competição sem tréguas (mas com muitos armistícios e acordos, escondidos dos outros membros do próprio grupo) não apenas para conquistar um lugar de direito, mas para serem os únicos detentores de direito.
          Em alguns momentos esses grupos parecem mudar de lado, ou de grupo, apenas para sabotarem o grupo alheio e montarem os seus próprios grupos com filiados e simpatizantes reiniciando o processo.
          Houve, por várias vezes, tentativas bem-sucedidas de transpor o vácuo que os separa dos andares superiores, lançando para lá representantes munidos de cordões que permitiriam estabelecer um canal preliminar que neutralizaria o vácuo com a evolução dos contatos do alto com a base. Mas o que acaba ocorrendo é que, tão logo os representantes se sentem seguros, cortam os cordões com a base que os projetaram e se estabelecem em novas bases.
          Há os que se demoram a se ancorar e são puxados para o vácuo, mas são poucos. A grande maioria até consegue a façanha de inverter os cordões e, em vez de serem manipulados por eles, passam a manipular as bases através deles, ampliando a complexidade dos acordos de topo.
          Sim, mesmo no topo há conflitos muito fortes para manter os interesses próprios (não da base ou da empresa) ao ponto de ameaçar até mesmo os pilares do prédio quando as coisas passam dos limites. E quando percebem que estão sendo observados através do vácuo, parecem ficar mais furiosos, mais valentes, mais enfáticos nos seus discursos, como se tivessem sido eles que os escreveram, e não os seus colaboradores, como chamam os que estão aquém do vácuo e a uma ligação de prontidão.
          Existem, é claro, os micro acionistas que mantém a empresa funcionando com sacrifício que, apenas a eles, é exigido constantemente, seja pelos que estão lá no alto, seja pelos que esperam alcançar, também, o alto. Esses, além de contribuir com o dinheiro para manter a empresa funcionando, ainda contribuem com os produtos que produzem (e que algumas vezes até conseguem comprar para uso pessoal) e, por mais trapalhadas que as lideranças e representatividades cometam, conseguem ludibriar todos e manter as coisas dentro do esperado, ou quase.
          Há um monte de desocupados ultimamente, gente que perdeu a função por conta da turma para lá do vácuo, e que acaba sendo uma boa massa de manobra para a outra turma que está por lá e que resolveu virar a mesa, chutar o balde de champanhe e as telas de planejamento. Mas já entrou, pelo lado de cá, a equipe de contingenciamento dando ideias de como montar suas próprias equipes e... Bem, o senhor sabe, aquelas coisas de sempre.
          Talvez alguns acabem se superando ou escapando para as concorrentes, e outros retornem em algum ponto, ou posto, mas nada que não tenha sido previsto anteriormente. Isso tem funcionado bem para conter os custos de treinamento de alto nível, deixando que os interessados banquem seu aperfeiçoamento, reinserindo-os em algum ponto do processo seletivo.
          Como o senhor pode perceber, as mudanças de paradigmas objetivadas e cuidadosamente implementadas ao longo do tempo, já estão fazendo os efeitos esperados e até alguns inesperados, mas nada que realmente ameace o controle efetivo que exerce, ou sua invisibilidade.
          Anexo envio o relatório formal com todos os documentos necessários para as próximas fases de execução. As planilhas com os desvios que podem ser restituídos dos membros descartados e realocados para novos desvios e, não menos importante, uma solicitação de café de boa qualidade.
          Justifico esta última porque, além de servir, também faço uso do mesmo e não me agradou o que havia no estoque, que foi devidamente distribuído em todos os níveis para consumo.

Sem mais, despeço-me,

Auditora e moça do café
Nassua K. Ébon



(Danny Marks)

Dez Graças à Tragédia


          Antes de iniciar, é preciso advertir.
          Se está vivendo uma tragédia pessoal, procure alguém que possa lhe ajudar de forma profissional ou, no mínimo, vá ler coisas que pintem o mundo de cor-de-rosa ou outra cor suave que gostar, não encontrará isso aqui.
          Se acredita que a verdade precisa ser empunhada como uma espada que vai golpear por todos os lados as mentiras que encontrar, sem se preocupar com os danos causados, não perca o seu tempo buscando a moralidade por aqui. Ela não aparecerá em momento algum, pode acreditar, é a verdade.
          Feitas as advertências necessárias, podemos prosseguir tranquilos com a nossa argumentação que demonstrará, sem deixar dúvidas, o quanto a Tragédia tem feito, e faz, pela humanidade. Sendo por esse motivo que podemos afirmar, sem qualquer constrangimento, que todos amam a tragédia alheia.
          Provavelmente não foram os Gregos que inventaram a Tragédia, ela já existia muito antes disso, mas não se pode contestar que foram estes que mais contribuíram para a sua visibilidade e sucesso. Quando vemos as ruinas do Partenon; quando lemos os clássicos gregos e suas contribuições na literatura moderna; quando pensamos nos filósofos que debulharam as certezas da vida e desconstruíram mundo; como não recordar das tragédias?
          Vejam as Olimpíadas, inspiradas nas histórias trágicas dos heróis gregos da mitologia, e que até hoje ressoam pelos quatro cantos do mundo. Quantos lembram dos recordes batidos? Quantos comentam sobre os feitos sobre-humanos? Mas, pergunte sobre o mais recente escândalo envolvendo atletas, ou sobre aquela derrapada quando a vitória estava quase garantida. Qual ganha mais importância nas mentes e nos corações? A tragédia, é claro.
          A tragédia inspirou Shakespeare, que inspirou tantos outros depois dele. Quantas carreiras de sucesso ganharam maior impulso depois de uma derrocada fenomenal? De empresários que faliram a bandas que se desfizeram. Quando pensam em Beatles, lembram mais do encontro com a Rainha ou a separação e o posterior assassinato de Lennon? E o Nirvana? Tudo bem, ainda temos o secular Rolling Stones, mas pode ver, estão todos apenas torcendo para ver qual música vai tocar quando cair o pano.
          As tragédias inspiram o melhor dos sentimentos, todos estão dispostos a se solidarizar com a tragédia alheia, quando ela é longe o suficiente para não os afetar. Ou então rir descontroladamente, quando é próxima o suficiente para ser presenciada e não tão grave que precise de uma intervenção imediata.
          Sim, tragédia boa é aquela que não está nem perto, nem longe, demais. Ninguém gosta de uma tragédia muito próxima, invadindo o espaço particular, exigindo providências. É preciso que ela fique em outro lugar, onde se possa ir até lá, quando se está disposto a se envolver, mas de onde possamos fugir, caso ela comece a nos alcançar.
          Só quando a história é trágica e está além da margem de segurança é que ela nos encanta, nos enternece. Deixa espaço para que possamos verificar a nossa preservação e demonstrar a generosidade. Desejamos por algum tempo o sucesso alheio, para poder usufruir junto, mas acima de tudo, desejamos que os bem-sucedidos abram espaço para que possamos ocupa-lo. E como são poucas as chances de sucesso, sempre podemos comemorar quando alguns fazem o favor de, depois de terem indicado o caminho, se afastarem dele.
          Enganam-se os que dizem que não há pessoas dispostas a se colocar no lugar do outro. A verdade é que há muito mais dessas pessoas do que se possa imaginar, só que a grande maioria pretende tirar o outro de lá antes de lhe ocupar o lugar, desde que seja um bom lugar para ficar por algum tempo, até surgir o próximo. Ah, como não amar o próximo?
          Tragédias criam carreiras promissoras, que o digam os psicólogos, advogados, humoristas, artistas, pintores, escritores, médicos, bombeiros, empreendedores, e por aí vai. Nem vou falar dos ilícitos, que a política aqui é outra.   Criamos a nossa sociedade na certeza que alguma tragédia a fará evoluir, ou será tragicamente exterminada e substituída por outra mais trágica ainda. Não há como negar, a tragédia está em nosso dia a dia, nos dando motivos para conversas, para não sermos alvos dela, para demonstrar que ainda podemos fazer mais no pior, basta haver a chance.
          Poderia discorrer infinitamente sobre as oportunidades que as tragédias criam, como aquelas inumeráveis palestras que não levam a lugar algum, mas não será necessário depois de um argumento incontestável. Foi uma trágica explosão que criou tudo no universo, que desde então caminha sempre para a entropia total, onde nada mais poderá existir, nem mesmo a tragédia de recomeçar tudo de novo.
         

Danny Marks

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Anteontem

Anteontem morri, e ninguém ficou sabendo.
          Não fiz alarde algum nas redes sociais, nenhuma nota de falecimento previamente escrita, nem tarja preta, como nos remédios que sempre me causaram espanto. De quem será o luto que tais remédios carregam? Da mente ou da alma?
          Morri assim, silenciosamente, por achar que fiz por merecer mais que apenas um minuto de silêncio. Tantas coisas que calei e muitas mais que falei ao longo desse tempo. Algumas até foram ouvidas e causaram diferença na vida de outros que tenha encontrado por acaso ou sorte, e que se esvaíram no tempo.
          Morrer tem um sentido libertador, liberta a dor que insistimos em manter presa dentro de nós. Não mais sentir a angústia que seca nos olhos, por coisas que continuam a existir, apesar de nós.
          Aquele filme que tanto desejava ver, perde a cor. Aquela viagem que necessitava fugir, por outro será feita. Aquele livro interminável que alavancaria a carreira com suas exigências cada vez maiores, jamais será escrito novamente.
          Pode ser que ocorra um inesperado sucesso, ao descobrirem que o autor daquele romance que centenas disseram ter amado, embora a editora tenha faturado apenas dois exemplares, ganhe ares de um clássico e adquira um público que confessará, compungido, que conhecia o iluminado que o produziu.
          Pode até ser que gostem da obra fictícia, simulando a vida, que se apresenta nas redes sociais, como a pegar os peixes que nadam nesse mar de diversidades e semelhanças. Então, recordarão de postagens e palavras, reclamarão ensinamentos que possam ter ocorrido e se sentirão tocados pela santidade do além que a todos torna santos.
          Morrer no auge da saúde, que doença não manda aviso e quando chega não dá espaço para mais nada, reclamando a necessidade absoluta de decifrar o enigma da vida sob pena de devorar os que não o conseguirem.
          Nada é tão libertador quanto morrer, nem mesmo a descoberta daquele planeta que, se tornados luz, poderíamos alcançar em apenas quatro anos e viver outra vida, talvez. Quem sabe até refazer todos os erros na esperança que desta vez ocorresse algo inusitado.
          Não mandarão flores, não regarão os jardins, não lembrarão das gafes homéricas e das piadas engraçadas que só foram descobertas passado o momento de rir, mas vão rir mesmo assim, por educação.
          Enfim morto posso ler os livros acumulados de poeira, e se não gostar dos primeiros capítulos, descarta-los sem remorso. Não serão cobrados conhecimentos ou palavras gentis para obras horrendas. Não serão dados elogios merecidos também, basta-lhes apenas terem sido adquiridos.
          Números poderão ser abandonados displicentemente, datas, saldos bancários, quantidade de amigos, coisas relevantes que se superaram ou não. Apenas quantos por de sol e amanhecer que foram vistos. A Lua, assim maiúscula, naquela foto que não será enviada e permanecerá egoisticamente guardada na memória sem desbotar.
          Não causará tristeza as imagens de crianças violentadas pela burrice humana, ou as tentativas torpes de justificar cada erro e punir cada acerto, de acordo com as interpretações e vivências que os interesses delinearam em cada caráter, como tatuagem da vida, feita de cicatrizes imperceptíveis a olho ou à nu.
           Pode-se morrer todos os dias, na busca de descobrir o que realmente é importante na vida, ou permanecer morto por algum tempo, usufruindo da plácida tranquilidade que só se alcança com a percepção da finitude.
          Até que a vida nos puxe de volta ao seu redemoinho trágico, e nos cobre alegrias e atitudes que devemos inventar constantemente para satisfazer de alegria aqueles que nos querem felizes e produtivos. Que nos querem por perto, mas não tão junto que tenham que nos carregar consigo.
          Anteontem morri por breve período, apenas um ensaio a mais para o grande cair do pano que um dia virá, o retorno ao camarim para tirar a fantasia e limpar a máscara pintada no rosto e, quem sabe, no cantinho obscuro iluminado em frente ao espelho, ouvir os aplausos do público, ou vaias que possam ocorrer, mas que não alcançarão mais que a música que deixamos de ouvir.
          E, só então, pensarei em retornar.


Danny Marks

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

A Décima Volta do Parafuso

          Existe ainda hoje uma milenar sociedade secreta de místicos que busca incansavelmente descobrir os segredos do universo na linguagem que, julgam, seja a única que o universo utiliza para construir e, portanto, revelar seus padrões implacáveis: a matemática.
          Segundo uma análise dessa filosofia com a qual tive contato há tempos, o padrão é uma forma de tautologia, é voltar a dizer o que já foi dito anteriormente com outras palavras; ou no caso do universo, fazer tudo novamente de forma cíclica, eternamente voltando ao começo. Descobrir os padrões sobrepostos seria poder controlar os padrões e as sobreposições, criando o novo padrão.
          Um outro mago e escritor já foi duramente criticado por usar uma tautologia ao afirmar que nascera “há 10.000 anos atrás”. Não por ter feito uma afirmação controversa acerca da sua idade, mas por ter feito uma tautologia. Se é “há 10.000 anos”, não tem como não ser “atrás” já que o verbo utilizado nessa forma indica semanticamente o tempo passado, não o futuro.
          O mesmo poderia ser dito de “voltar atrás”, uma redundância de termos que dizem a mesma coisa, se volta, tem que ser atrás, não há como voltar para à frente, já que voltar significa implicitamente que se estava alinhado com um sentido que será revertido. Mas e se atrás for utilizado no sentido de buscar?
          Ou seja, voltou para buscar algo que havia esquecido, e esqueceu de o dizer. Então voltar atrás (de algo) não seria uma tautologia, mas uma filosofia de retomar o que deveria estar presente.
          O padrão seria justamente uma volta atrás que avança em algum sentido resgatando algo que já havia. E nesse ponto a minha cabeça começa a dar voltas também, como um parafuso que fica solto pelo aperto excessivo, cheio de voltas a serem dadas, mas que não avançam sobre nada. “Procrastinação” gritam os enfurecidos usuários de tortuosos pensamentos, que ignoro para prosseguir em frente, rindo descaradamente só para complicar ainda mais os paradoxos léxicos.
          Seria a linguagem do universo um parafuso que retorna ao mesmo ponto para avançar em algum sentido desconhecido? O futuro repetindo o passado com apenas uma ligeira espiral a indicar um avanço que não passa de uma ilusão de presente?
          Quantas justificativas poderiam ser dadas, nesse caso, revelando o motivo de, ao avançarmos tanto, não tenhamos saído verdadeiramente do mesmo ponto, apenas aparentando um progresso ilusório, onde as questões que sempre nos moveram, permanecem as mesmas.
          Avançamos no combate ao preconceito, e permanecemos preconceituosos de outras formas semelhantes. Avançamos nas tentativas de paz e até criamos uma guerra, para promove-la. Elegemos velhos políticos para substituir os atuais e esperamos que as coisas mudem. Resgatamos velhas ideologias que não funcionaram (ou não estaríamos com problemas agora) na esperança de que resolvam (desta vez) os mesmos problemas. Estudamos novas tecnologias que nos libertarão do trabalho e nos devolverão a vida que merecemos e trabalhamos mais para obtê-las ao preço de nosso tempo de vida.
          Tudo parece dar voltas e permanecer praticamente igual. A espiral que deveria nos levar acima, nos afunda e nos prende cada vez mais fundo. Então para prever o futuro bastaria olhar para o passado e dar-lhe roupas novas e coloridos que antes não haviam, mas que não alteram os conteúdos que apresentam. A história se tornaria o objeto de estudo das cartomantes.
          Retornar ao mesmo, parece ser a constante universal humana. Desde a retórica inventada pela filosofia dos gregos para desvelar a verdade oculta, até a reinicialização da matrix que recicla toda a realidade ilusória em que estamos, na verdade, presos irremediavelmente. Ou será que apenas tentamos descobrir novas soluções partindo dos mesmos elementos?
          Onde estaria a criatividade se tudo fosse o mesmo? A criação seria apenas uma releitura de tudo o que já existe de alguma forma, e nada de novo surgiria nesse paraíso onde a serpente esperaria pacientemente com uma maçã.
          Por certo essa questão é o que nos move desde tempos imemoriais, e provavelmente a solução será simples e óbvia, assim que a descobrirmos. Provavelmente estaremos repetindo o passado por simples medo de tentar algo completamente novo e desconhecido que possa nos destruir, e avançamos seguros para uma destruição conhecida e repetida à exaustão.
          Para que arriscar ficar pior? Tolos são os místicos que buscam descobrir nas linguagens matemáticas os segredos milenares, ou os cientistas que fazem uso dos mesmos instrumentos lógicos para tentar decifrar a mesma coisa, mas de uma forma diferente, com resultados praticamente iguais. Tautologia é o padrão que parece reger o universo pelo prisma da mente humana.
          Ou então, temos que nos reinventar de uma forma completamente nova, abrindo espaço para a incerteza de não saber hoje mais do que sabíamos ontem e nos deslumbrarmos com algo completamente inédito, que será imediatamente copiado e reproduzido a exaustão por todos os lados até acrescentar mais uma volta a espiral desse parafuso que parece infinito, e do qual ainda só atingimos, talvez, a décima volta, seja lá em que sentido estiver sendo pressionado.
          Ao menos teremos a certeza de que a vida é o que sempre foi, e se renova a todo momento, tentando, desta vez, fazer a coisa certa.


Danny Marks

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

O Caminho do Meio


          Está cada dia mais difícil conviver com as pessoas de forma civilizada, por isso que muita gente acaba fazendo trilhas off-road, para relaxar o espirito e ter um contato melhor com a natureza. O problema é que, em tempos chuvosos, o carro fica parecendo bife à milanesa, com aquela crosta envolvendo por todos os lados, que até desanima.
          Mas quem tem uma lava jato como o meu vizinho de frente, não se assusta com a coisa por mais ruim que pareça, e os problemas vão se dissolvendo rapidamente diante dos poderosos efeitos dos jatos da limpeza, que arrancam qualquer sujeira, por mais escondida que estivesse. Revelando no processo as histórias passadas em lugares sombrios e escorregadios.
          E voa sujeira e lama grossa para longe, enquanto a verdadeira e brilhosa tinta da civilidade vai sendo revelada. Que o diga o vizinho do lado esquerdo do meu vizinho de frente. E diz! Com gritos que atravessam a rua e chamam a atenção do bairro todo.
          Imediatamente começa uma campanha para terminar com essa operação da lava jato que está sujando completamente o seu quintal. Nem adianta dizer que aquela sujeirada toda não estava lá antes, e que é completamente ilegal fazer algo daquele jeito. Ameaça de todas as formas possíveis e imagináveis, faz campanha para mobilizar e até passeata colorida, com bandeirinhas e tudo.
          O vizinho da direita do meu vizinho de frente ao ouvir o clamor da multidão embalada pelas músicas que se criaram no calor do momento para dar ritmo à manifestação, logo toma partido, defendendo a decência de retirar a sujeira doa a quem doer. Como assim não havia sujeira no seu quintal se todo mundo sabe que sempre esteve lá. Está é contra a operação da lava jato porque gosta mesmo da sujeira, e a prova está lá naquele carro que só vê agua quando chove ou alaga. Como o carro não é seu se quem usa é a sua família? Que empresa que nada. E tem mais, já dá para sentir o cheiro de que tem algo muito podre lá para o lado da esquerda.
          Enquanto a briga rola solta, o da direita brigando com o da esquerda (com direito a passeatas, bandeirinhas, bandas de música que aproveitaram para fazer o comercial do seu show, e até um ou outro artista que aproveita para ensaiar uma pantomima), o vizinho da frente termina um dos lados e começa a limpar o outro, e tome sujeira voando para o outro lado.
          Aí o bicho pega feio, o da direita reclamando que assim não pode ser, que na verdade isso foi uma manobra da esquerda para tumultuar toda a situação, que vai acionar as autoridades máximas para acabar com a bandalheira. O da esquerda começa a tirar um sarro, dizendo que vai voar lama no telhado de vidro e no jardim japonês. Quer mais é ver as carpas nadando na lama para ver como é a vida de peixe pequeno. Onde está o apoio que estava dando agora que a coisa virou de lado?
Como o barulho estava alto que ninguém mais se entendia, logo apareceu um megafone, carro de som e até chamaram a reportagem para apresentar os fatos incontestáveis. E a notícia foi se espalhando tanto que logo tinha jornaleiro vendendo até revista encalhada para garantir um trocado. Até veio gente do outro bairro para assistir a briga, e não demorou para aparecer uma turma com mascaras ninja distribuindo cartão, divulgando os seus serviços, mão de obra pronta para entrar em ação. Até quiseram dar uma demonstração, mas a multidão acabou abafando o caso, vai que a polícia aparece e acaba com a festa.
          Não demorou muito para ter barraquinha vendendo lanche, camisetas deste ou daquele lado, utensílios simbólicos, placas feitas na hora e fogos de artifício. Um outro lá da ponta começou a alugar cadeira na calçada para os que queriam tomar partido de longe, mas teve que levantar uma cerca no meio da rua para evitar confrontos que destruíssem o seu investimento.
          Quando a coisa parecia que não podia piorar, a turma que estava vendo tudo pela TV, na sala do vizinho da frente, começa a reclamar do barulho exigindo uma compensação em salgadinhos, pipoca, refrigerantes e cervejas. Uma dona sobe na mesa e grita que só aceita de vinho para cima, que de pobreza já chega os que estão em volta, e logo uma galera protesta ofendida com o comentário, exigindo explicações.
          Quase exaurido com tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo, a lava jato já ficando sem força de tanta gente pisando na mangueira, e sem ter para onde correr diante da catastrófica situação, o vizinho da frente resolve tomar uma atitude impensável até então e, em um ato completamente autoritário e totalmente reprovável, pela minha perspectiva, pega o carro e vem me devolver sem terminar o serviço, pelo qual, é claro, não vou querer pagar, não adianta.
Agora estou com esse problema em mãos. Como vou poder fazer o próximo off-road com o carro daquele jeito? E, cá entre nós, não dá para suportar conviver com esse tipo de vizinhança sem dar uma escapada de vez em quando. Ninguém merece essa barbárie toda.
Então fica o meu apelo, compungido: Alguém por aí sabe de alguém que tenha uma lava jato e faça um serviço confiável?


Danny Marks

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Não acredito em Bruxas


          Essa coisa de adivinhação é tudo uma tremenda bobagem. Uma milenar forma de enganar os bobos que não conseguem conviver com os seus medos e os transformam em superstição, de forma que se cria uma cultura ritualística em cima dos medos e, na devida proporção, consegue-se até exorcizar o terror individual tornando-o um terror coletivo chamado de religião.
          Se as pitonisas e cartomantes soubessem do futuro, teriam previsto a inquisição que levou as bruxas à fogueira e teriam se mantido quietas em seus cantos obscuros, adivinhando apenas os melhores caminhos da fortuna.
          Nem é preciso apontar o óbvio, que não se conhece uma sequer dessas sacerdotisas de Apolo que tenha enriquecido com os seus dons sobrenaturais. Desafiaria a qualquer um apontar quem seja a exceção a essa regra, apesar de haver Cassandras a predizer os infortúnios há milênios, antes que qualquer outro mundo tenha se consolidado nos altares, estes sim, cravejados e dourados.
          Apesar de minha ferrenha convicção, justificada como lhes apresentei por fatos incontestáveis da lógica, tenho que confessar que a curiosidade é um mal que nos faz ignorar até mesmo os medos mais pitorescos e nos atira em armadilhas das quais nos desviaríamos facilmente, se não fosse a dúvida lançada como uma isca ao nosso mais íntimo ser.
          Junte a isso a rotina constante de passar em frente ao covil da bruxa, com sua chamativa placa desgastada pelo próprio tempo que alega prever, e se tem a certeza de que a arapuca será eficaz no seu trabalho de capturar mais um desavisado e honesto cidadão, ao troco de só o libertar por malfadados cinquenta reais.
          É um absurdo que alguém pague essa importância para ser enganado, diz a consciência ao passar pela porta aberta, a caminho de gastar quatro ou cinco vezes mais essa importância em um almoço de qualidade duvidosa.
          Ao menos é mais barato que aqueles psicólogos que cobram três vezes mais por período, diz-lhe na segunda ou terceira vez que nota ainda aberta a tal porta.
          Está mais barato que um livro de renome, e ao menos é uma ficção da qual se participa inteiramente, reflete na sétima ou oitava olhada para o cartaz que insiste em manter-se surrado e sujo.
          Gasto mais com uma pizza no final de semana e talvez não a aproveite tanto quanto o que se pode conseguir por aqui. Justifica-se a consciência ao, finalmente, entrar pela porta e dar de cara com a mal iluminada escadaria que conduz para uma névoa que fede a algum tipo de incenso barato.
          No fim desse corredor ascendente, dá-se de cara com uma cortina de miçangas que produzem barulho de ossos minúsculos a chocar-se, ou pelo menos deve ser esse o som que ossos minúsculos produzem. E lá em algum canto está a mesa com uma toalha branca, uma vela que será acesa durante a sessão e uma daquelas bolas equipadas com uma bobina de Tesla que fica emitindo raios para a superfície interna.
          A Madame Shanta, cuja purificação deve ter retirado qualquer traço hindu do seu DNA, aparece com roupas folgadas e brilhantes, que refletem os efeitos luminosos do ambiente obscuro, e estende uma mão para indicar onde sentar e outra para receber o pagamento, adiantado, que o futuro se paga agora, não amanhã.
          Perguntas podem ser feitas a qualquer momento, enquanto os raios mágicos estiverem funcionando e transmitindo suas mensagens diretamente às mãos videntes que tocam a esfera do tempo. Como fica a situação financeira? Não se preocupe. O amor, continuará firme ou se perderá na convivência ou em trágica traição? Não se preocupe. E a saúde? O que dizer da saúde? Não se preocupe. Como não me preocupar se desconheço o futuro? Ah, o futuro, isso pode ser revelado, mas custa um pouco mais caro. Apenas vinte reais a mais.
          Ora, quem já chegou até o alto, como voltar sem saber do futuro, não é mesmo? Ir até a fonte e voltar com sede. Tome lá os vinte e dê-me a visão do futuro onde não me preocuparei com saúde, dinheiro ou amor.
          Vejo um avião. Opa, uma viagem? Para qual lugar? Não, um avião em queda, muitos mortos. Meu DEUS, vou morrer em um desastre de avião? Não, vejo uma chave de fenda. Uma chave de fenda? Vou ser morto por uma chave de fenda? Não, uma luz brilhante, muito forte, está me cegando. Vejo uma luz muito forte no seu futuro. Não posso falar mais.
          Claro que saio decepcionado com o futuro que se revelou, afinal de contas, brilhante. Mas não deu indicativo de como se daria. Por dias as peças não se juntam. Até que, estando a ver o noticiário na televisão, aparece o tal avião que caiu em algum lugar que não sei dizer, porque a imagem não estava boa. Saco logo uma chave de fenda para arrumar a conexão que está frouxa e restabelecer o sinal e ao tocar por engano o fio errado...ZAAAZZZZZZ
          — E o senhor morreu?!!
          Calma, pessoal, não se assustem. Claro que não morri, ou não poderia estar aqui falando com vocês. A própria Madame Shanta já havia dito que não me aconteceria nada. Só a luz brilhante que me cegou por vários dias e me levou a UTI onde fiquei por um fio, mas voltei.
          — OOOOHHHH... OOOHHH

          Voltei e posso lhes afirmar, tudo o que a Madame Shanta falou, se realizou na minha vida. E é por isso que estou aqui, sem ganhar nada, para organizar a fila dos atendimentos. Por favor, um atrás do outro e podem pagar diretamente comigo. Por tempo limitado estamos aceitando também débito em conta, mas não cartão de crédito que o futuro se paga agora. Por apenas cem reais vão poder ter uma grande mudança no seu entendimento sobre a vida. Aqui está, senhor, basta subir a escada que vão conduzi-lo. O próximo!

Danny Marks

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Uma Dose de Veneno e Dois Cubos de Gelo

          A grande questão não é que santo de casa não faz milagres, mas o fato de que as vezes precisamos de outra coisa para solucionar as coisas que nem reza brava consegue dar jeito.
          É por esse motivo que tenho percorrido o mundo em busca de grandes gurus, pessoas iluminadas, e outras afins, na tentativa de alcançar um estado nirvânico, sem controle governamental ou coisas do tipo.
          Não é que não goste de governo, que todos sabem ser um mal necessário para que se possa ter alguém para culpar por todas as coisas erradas, feitas ou não por ele. Na verdade, não gosto de ficar mandando. Fico esperando que o bom senso prevaleça, que os acordos sejam cumpridos, que a inteligência dite as regras e, acima de tudo, que me deixem em paz para que possa cuidar do meu próprio caos interior.
          Os opostos se complementam, é a regra inflexível da existência que descobri há tempos, e culmina por me brindar com amigos caríssimos que me ajudam a ver as coisas de outra forma, e até a adquirir uma certa sabedoria alternativa aos milagres nunca alcançados.
          Uma dessas pessoas que me trazem a alegria de viver com sua simples presença, é a Juíza. Pessoa equilibradíssima, sempre generosa e de uma paz que faria inveja a muito santo de pau oco que se arroga milagroso nos tempos de hoje. Não por outro motivo que me apraz por demais ter longos diálogos com essa pessoa e, quando as complexidades das agendas permitem, sentamo-nos no mesmo restaurante para degustar a companhia e trocar experiências.
          Foi em um dia desses que a percebi triste, incomodada com algo, o que obviamente me perturbou mais ainda. Não poderia deixar que meu melhor exemplo de eixo do mundo se desestabilizasse sem, ao menos, tentar descobrir qual a tragédia que poderia acometer a humanidade, além de todas as outras.
          — Não é nada, bobagem. Apenas a minha empregada que pediu demissão e pediu para enviar pelo correio o acerto das contas.
          Eu, que já conhecia de outros carnavais as duas jararacas velhas que serviam de empregadas para a Juíza, estendi o assunto apenas por curiosidade. O que poderia ter acontecido de tão grave que a levara a demitir a peçonhenta criatura? E nem sabia qual das duas seria, pois embora de espécies diferentes, equivaliam em periculosidade ofídica.
          — Nossa, que coisa chata. O que houve? Pegaram dinheiro da sua carteira novamente? Tentaram afogar o cachorro na piscina? Botaram fogo na arvore de natal? — Arrisquei algumas opções que já haviam ocorrido anteriormente, sem que a Juíza tivesse perdido a sua postura equilibrada e generosa. Não conseguia conceber algo tão grave que pudesse provocar a demissão das colaboradoras centenárias.
          — Brigaram uma com a outra. E a Anaconde me ligou dizendo que não vai mais trabalhar lá. Imagina, depois de vinte e dois anos morando com a gente, pediu demissão por telefone e ainda quer o acerto pelo correio. Como se fosse possível isso. A Demoniana, claro, deve estar exultante. Há tempos que não se dão bem e sempre ficam fazendo intriga uma com a outra.
          — Sim, eu sei. Ainda acha que foi a Demoniana que sumiu com o dinheiro para jogar a culpa na outra?
          — Ah, vai ver que alguma delas estava precisando. Deixei para lá. Poderiam ter pedido, mas não vou ficar acusando ninguém, ainda mais que uma delas é inocente, coitada.
          — Sei, inocente. Como no caso do cachorro que caiu na piscina porque deixaram a porta aberta.
          — Anaconde já tinha dito que não gosta de cachorro, nem olha para ele. Vai ver que esqueceu de fechar a porta e como ele ainda é criança, escapou. Ainda bem que o seu Armando estava por perto. Por falar nisso, nem sei o que o seu Armando estava fazendo por ali, ele deveria ficar na portaria do condomínio. Enfim, não aconteceu nada. Mas as duas ficam jogando a culpa uma na outra, querendo que eu demita essa ou aquela. Não posso fazer isso, elas já estão comigo há anos, me ajudam a fazer as coisas. Não posso deixar alguém que não conheço entrar na minha casa.
          Acenei com a cabeça concordando abismado. Como desejava ter essa alma clonada de Gandhi. E essas nem eram as mais graves ofensas que aquelas duas “colaboradoras” já tinham feito. Eu apenas não queria deixar a minha amiga chateada com a minha postura que, comparativamente, seria crudelíssima.
          Me sentia arrasado por não conseguir alcançar essa tranquilidade de conviver com a adversidade e ainda ter uma paz iluminada e a tranquilidade equilibrada que a minha amiga Juíza tinha, quando percebi que o garçom se aproximou para receber o pedido. Ela olhou diretamente para ele com aquele olhar santificador e disse suavemente.
          — Você pode me trazer uma dose de veneno e dois cubos de gelo?
          Demorei algum tempo para processar o pedido, jamais teria conseguido ser garçom na vida, que apenas terminou de escrever e perguntou:
          — A senhora deseja que embale para viagem?
          Isso foi o fim. Parei de procurar pelo mundo a fonte da filosofia transcendental, ela estava o tempo todo bem aqui ao lado, ao alcance da mão. Bastava-me apenas erguer a venda que me tapava os olhos para ver. Quem precisa de juízo quando se conhece a Juíza? Que os deuses abençoem.


Danny Marks

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Saudável Escorpião


Há duas coisas que sinto muita falta na alma quando não as tenho por perto: o sol e o mar. Talvez por ter vivido toda a minha história recente junto a esses dois ícones que trago comigo, poucas vezes me ausentando por muito tempo e sempre sentindo falta, me acostumei a usufrui-los quase de forma natural. Sem excessos, porque, como já me lembrava a minha falecida avó, em sabedoria equiparável e confirmável por muitos sábios mais antigos, a diferença entre o veneno e o remédio é apenas uma questão de dose.
Então, sempre que me permito, sigo para a praia com um bom livro e alguns vícios à mão, para aquecer o corpo e a mente ao som da melodia constante e embaladora de sonhos.
Ainda que não tenha sido para meu ócio exclusivo, coincidentemente o prefeito da cidade onde moro mandou instalar excelentes e confortáveis bancos públicos no belo jardim que beira a longa faixa de areia, sendo-me alternativa para os dias em que não se justifica ficar tão mais próximo ao mar com suas ondas quentes e ventos refrescantes.
Em um dia desses em que a preguiça de levar a cadeira de praia e me postar na areia sob um guarda-sol a fazer-me sombra à leitura tornou-se particularmente intensa, sentei-me como digno usuário do recurso público disponível, a aproveitar as delícias divinas que a luz vinda de longe, até de outros tempos pelo que me consta nos parcos conhecimentos que acumulei sobre o assunto, e me dispus ao reconfortante emergir nas tramas e intrigas que tanto fascinam quando nos sentimos seguros ao acompanha-las.
Em um banco próximo, no entorno do mesmo pedaço de jardim cercado de calçamento por todos os lados, recostava-se um outro cidadão com um olhar tão gasto quanto a pele que lhe recobria o corpo ereto, mesmo quando sentado, lembrando-me um Drummond reencarnado em uma bermuda acompanhada de camiseta e chinelos de boa marca.
Enquanto que meus vícios não incomodem os mais próximos, acerquei-me do imaginário que muitas vezes me rouba a percepção da realidade, ainda que, no processo, acabe por aguçar a mesma nos momentos em que não lhe é exigida uma atenção direcionada para outros fins que não o fugir desta.
Portanto não sei ao certo afirmar em que momento ou de que forma se iniciou um diálogo paralelo com um personagem que, vindo como o vento, balançou as folhas, sacudindo as palavras em que me concentrava.
Péssimo hábito, diriam os mais puritanos, de ficar ouvindo conversa alheia. Mas, por esquecimento, não por qualquer outro motivo justificável, não trouxera os tampões de ouvido que atualmente se usam para abafar com alguma trilha sonora exclusiva os ruídos do ambiente em que se pretende estar. Sendo assim, foi-me impossível não ouvir as palavras que me espantaram qualquer atenção que pudesse dedicar à ficção que muito me agradava, por estar a realidade em tom tão alto que se tornava clara como uma manhã nublada de sol.
— Tinha mesmo era que voltar a ditadura para dar jeito nessa bandalheira toda. Uma revolução e colocava-se as coisas no lugar. Ainda que alguns inocentes morressem, justificava-se com o progresso.
Reclinei-me como a fugir dos resíduos poluentes do meu vício a queimar lentamente nas mãos e ajeitei os óculos para ver melhor o articulador de abismal, de tão profundo, pensamento. E para minha surpresa, se tanto, não era o pergaminho vivo de Drummond que proferia as sonoras palavras, mas um lustroso e encorpado Adônis, quase tão vestido quanto um Davi de Michelangelo empunhando as correntes que continham Cérbero fielmente guardando as portas do calçadão, ou talvez, apenas o imenso cérebro eletrônico que trazia acoplado ao braço que lhe reduzia proporcionalmente o tamanho.
Por segundos tive pena do poeta pigmentado, sujeito a intempestiva intimidação hormonal, apesar de sua postura engessada em uma altivez frágil de castelo de areia que já vira muitas ondas a arrebentar na costa com toda sorte de refugos que o mar regurgitava enojado. Poucos segundos, eu disse, pois foi o tempo que levou para apresentar a voz sem um tom a mais, ainda que perfeitamente audível aos ouvidos atentos que acabaram de conquistar.
— Diga-me, senhor. Considera a pessoa com quem tem um relacionamento amoroso, inocente? Talvez uma filha, ou irmã? Não lhe digo mãe ou outro parente, mas quem sabe alguém com quem tenha uma relação de respeito e admiração?
— Como assim? O que quer dizer com isso?
— Pergunto-lhe apenas como preparação para a verdadeira curiosidade que me assola neste momento. Qual dos inocentes que supostamente conhece, gostaria de ver mortos para que tal progresso voltasse a existir?
— Está me ameaçando? Não estou entendendo onde quer chegar.
— Realmente não parece estar entendendo. Acalme-se, não lhe faço ameaça maior que a que o senhor mesmo representa para si. Deixe estar, creio que não vai se recordar disso amanhã, como não se recorda sequer de quem fui, e ainda sou.
E, levantando-se com insuspeita flexibilidade e energia, foi-se embora em passo compassado e firme, aquele fantasma do passado. Não antes de piscar-me os olhos claros e sorrir com humor irônico ao deixar-me aos cuidados das aberrantes construções modernas que poderiam até ser consideradas intervenções artísticas, se algum apreço cultural despertasse.
Desde então, sento-me em outro ponto deste aprazível lugar onde moro, mas não antes de verificar o entorno, que a cada página virada é revisto para identificar se, inadvertidamente, algo terrível está para acontecer. E só então retorno para as tramas e intrigas seguras da fantasia.
E aos que queiram me perguntar sobre quem seria a tal figura de aparência insignificante que desafiou o gigante ciclópico, quero deixar claro que longa e exaustiva pesquisa tive que fazer nos anais da história e, por fim, acabei por decidir-me que há coisas que é melhor que fiquem onde estão, no passado, ou no máximo se tornem ficção na mente de algum escritor, para a segurança dos que amam apenas ler em paz.


Danny Marks

domingo, 21 de agosto de 2016

Medalha, medalha, medalha...

“Mutley, faça alguma coisa!” gritou o Dick Vigarista para o seu colaborador nas inúmeras trapaças, tentando a todo custo fazer fracassar os Jogos Olímpicos no Rio 2016. Mas o Mutley, já tomado pelo espirito olímpico, só pensava em uma coisa: “Medalha, medalha, medalha!!”.
Assim é o Brasil e seu povo, cheio de contradições, coloridos, alegrias, brigas, malandragens, gambiarras e soluções mágicas, fazendo uma Corrida Maluca em busca de dias melhores.
Temos sim, nossos monstros e musas, temos um pouco de cada canto do mundo em nossa genética, nossas cores, nosso cardápio, nossos amores, nossos rancores e alegrias. Temos um pedaço de cada canto encravado de norte a sul, temos buracos que cabem o mundo e um abraço que acolhe a tudo e a todos, para o bem e para o mal.
Somos passionais, viscerais, somos de briga e de ginga, somos os velhos sábios e os moleques matreiros em uma biodiversidade que separa e junta tudo de novo, que remexe, mexe, requebra, apimenta, refresca e se renova constantemente, na antropofagia que nos torna iguais e diferentes, com identidades mil.
Aqui nesta terra de contradições extremas, em se plantando tudo dá. E nas diferenças vamos nos reconstruindo, nas semelhanças vamos investindo, na esperança que cai atrapalhando o tráfego, mas se levanta sempre em uma construção que parece nunca ter fim.
Estamos abertos para obras, e reinventamos a cada ano a alegria de viver, no carnaval da vida que pede passagem, abre alas sem se preocupar com o protocolo, desculpando-se na simpatia que contagia, na alegria de viver intensamente em todos os momentos.
E assim, com tudo que temos, fizemos a festa olímpica. Superamos os obstáculos, inventamos outros obstáculos, projetamos o futuro e resgatamos o passado. Fizemos o combate na paz, a competição na superação pessoal e no desejo de ser o melhor do mundo. Provamos para todos que é possível fazer algo maravilhoso e simples, algo engajado e comovente. Trouxemos os deuses do Olimpo para dançar com os Orixás, com Tupã, com Jesus no Corcovado, porque nós temos a festa no sangue e na alma.
Por alguns dias trouxemos o mundo para a nossa casa, apresentamos o nosso melhor e o nosso pior, conquistamos amigos, conquistamos um lugar no coração dos que nos acolheram, e que acolhemos. E acima de tudo conquistamos o respeito que merecemos, ainda que muitas vezes nem mesmo o tenhamos por nós.
Se uma lição vai ficar, nesses Jogos Olímpicos do Brasil, é que seremos sempre brasileiros, até debaixo d’água, e nunca perderemos a nossa identidade plural, por mais que as coisas sejam difíceis, por mais que ninguém acredite que iremos conseguir. Porque o que nos faz sermos do jeito que somos é a certeza de que não desistiremos jamais de plantar, cultivar e colher a esperança e, um dia, isso fará toda a diferença por um Mundo Melhor.
Parabéns Brasil, pelos jogos em paz, pela festa e pela superação. Que os bons exemplos fiquem e inspirem as próximas gerações.


Danny Marks

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Arco-Íris de Cores Berrantes

          Um arco-íris de cores berrantes cruzou o espaço e atingiu a terra como um relâmpago destroçando a paz que encontrou pelo caminho fraturando o sorriso.
          Não, não fiquei maluco. O mundo também não está louco. As coisas estão como sempre foram, apenas mais visíveis e, por algum tempo, mais expostas. Engana-se quem pensa o contrário.
          Um campeão olímpico, um ídolo de comportamento extravagante, muitas vezes violento e estúpido, se vê às voltas com uma mentira descarada, que provoca uma terrível e desnecessária confusão. Hércules acaba pagando o preço por seu comportamento e acaba sendo redimido pela ação divina para servir como um símbolo para reflexão.
          Talvez alguns tenham pensado na recente questão envolvendo um atleta da natação e sua trajetória conturbada e as consequências da sua imaturidade que poderia ter criado um problema mais sério e mais difícil de contornar.
          Tem aquele outro caso que emocionou a todos, do garoto desconhecido até então que morreu afogado ao fugir da guerra, ou aquele outro que teve a sua inocência roubada diante da violência dos que, supostamente, lutavam pela sua liberdade. E a violência acabou por lhes roubar tudo o que possuíam, em nome de lhes dar exatamente o que lhes roubaram: vida, liberdade, segurança, paz.
          Não estou me referindo a Alan Kurdi, nem ao Omran Daqnesh, as pequenas vítimas que ganharam o mundo na tragédia Síria, provocada pela ideologia de violência como justificativa para resolver os problemas que possam haver e que, supostamente, não teriam outro meio de serem resolvidos. Estou me referindo a desconhecidas crianças neandertais, vítimas da guerra contra os homo erectus, nossos antepassados que os exterminaram completamente, deixando apenas ossos como registro dessa coabitação nada pacífica.
          A questão está em que somos capazes de nos sensibilizar pela tragédia de alguns que nos causam simpatia, mas ignoramos completamente a tragédia de outros que não conseguem nos comover da mesma forma. E a violência parece ser sempre a resposta mais imediata, até mesmo a um sentimento de revolta diante... da violência.
          Quantas pessoas “de bem” não falaram emocionadas que é preciso “acabar de vez” com esse ou aquele, para que a paz volte? Quantos não berraram indignados que é preciso lutar, ainda que alguns inocentes morram, para se conquistar a paz. Na verdade a Pax Romana era baseada nesse princípio de imposição a força de uma ideologia de paz e progresso, ditados pelos conquistadores.
          Não, o mundo não mudou, não ficou louco de repente. Apenas não aprendeu com as lições antigas, não aprendeu a conviver com as consequências dos atos passados. Os que hoje pedem a vinda de um novo meteoro que exterminou mais de noventa por cento da vida na Terra, incluindo os “vilões” dinossauros e as inocentes plantas e animais menores, dando oportunidade para que os mamíferos construíssem o seu império; são os mesmos que tremiam com o holocausto nuclear possível da guerra fria, o nosso “meteoro” criado especificamente para eliminar vilões e inocentes de forma global, e que, felizmente, não foi lançado.
          As cores vibrantes do arco-íris deveriam nos alertar para um fato que está visível, mas é ignorado constantemente. A cor branca que simboliza a paz é decomposta em todas as cores pelo prisma, que a fragmenta. Só quando as juntamos de novo de forma harmônica podemos recriar a luz branca.
          Esse fato óbvio, cientificamente comprovado, exaustivamente demonstrado, nos leva a pensar que existe alguma lógica na decomposição que cria a beleza das cores, mas que pode causar o caos da decomposição da vida.
          A energia vibrante percorre todas as formas, tem a sua função na natureza e sua existência garantida no universo. Mas como qualquer ferramenta que pode ajudar a construir coisas maravilhosas, carrega no seu bojo a semente da destruição de tudo. O desequilíbrio que movimenta, e o equilíbrio que sustenta, se alternando para que o ritmo seja dado, em um ou em outro sentido.
          E quem determina para que lado estamos indo? Nossos humores que fazem expor os ossos mais evidentes do corpo, na fratura exposta do sorriso ou na união forçada das mandíbulas cerradas, como uma advertência muda contra o futuro.
          O mundo não ficou maluco, apenas ainda não descobriu o que fazer com a sanidade.


Danny Marks

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

A Verdade em camadas

          “Nunca antes na história...” e “O Diabo está nos detalhes”, são clichês que insistem em continuar vivos, e o motivo é bem simples, ou não.
          Pense em um lago grande e profundo. Na superfície você pode ver as aguas calmas, algumas pessoas velejando, ou pescando, ou até mesmo andando de pedalinho; por baixo pode estar havendo nesse exato momento uma luta de vida ou morte entre os predadores e as presas. Pode até haver um cadáver semidevorado, encravado entre outros restos lançados de forma criminosa, armas descartadas de algum crime insuspeito, ainda.
          Ou, pode ocorrer exatamente o contrário. A superfície agitada por uma terrível tempestade, que não consegue causar nenhum dano ao mundo subaquático que segue o seu curso natural, tranquilo e calmo como uma ostra fazendo a pérola que, talvez, acabe em algum colar famoso.
          Foco é o que determina o quanto da verdade vamos perceber ou não, e isso pode ser manipulado de forma bastante hábil, pelos que entendem como fazer as coisas parecerem o que se deseja que elas sejam. Nada de novo até aqui.
          Realmente não há nada de novo em toda a história, as velhas formulas são aperfeiçoadas, mas não alteradas. São raras as criações originais de fato, como o Diabo, que até a idade média, sequer existia, mas que a partir de então, possui ação retroativa até o início dos tempos.
          Contra fatos não há argumentos, eles estão lá e resistem de forma científica incontestável a qualquer análise. Mas, fatos podem ser apresentados ou permanecer ocultos, e o pior, podem ser interpretados fora de um contexto que transforma as “verdades” que apresentam de forma completamente diferente do que o fariam em outros modelos. São peças menores da verdade, detalhes que abrigam o tal diabo e suas tramas.
          Há aqueles que dirão que quanto mais informações, mais detalhes forem levantados sobre qualquer coisa, mais se conhecerá a verdade. Mas isso não é uma realidade constante. É possível apresentar tantas informações que a simples exposição faz com que todo o quadro se torne confuso, criando a dúvida e desenvolvendo teorias interpretativas que podem até ocultar ainda mais a verdade que pretendiam revelar, de forma maliciosa ou não.
          É nesse momento que o foco assume o papel de indutor da verdade, criando seletivamente um conjunto de detalhes que corrobore, confirme, a narrativa que se deseja apresentar e que, normalmente, acaba sendo a mais convincente até que se prove o contrário, por interesse que possa haver, quando for capaz de se contrapor ao que já foi determinado.
          A narrativa é o que provoca o “efeito borboleta” onde o bater de asas de uma borboleta em um lado do mundo acaba provocando uma série de consequências interligadas que culminam com um furacão do outro lado do mundo, cientificamente comprovado pela mecânica quântica dos argumentadores que elaboram as engrenagens desse complexo mecanismo.
           Dessa forma, até mesmo os livros de história podem ser revistos e novos fatos acrescentados, alterando completamente uma narrativa que já estava estabelecida, mas que diante de “novas descobertas” torna-se obsoleta, sendo necessária sua reavaliação dentro de um novo cenário interpretativo que estabelecerá uma outra verdade incontestável até que algum detalhe faça o diabo novamente e o processo se reinicie.
          Então, fica cada vez mais difícil acreditar em qualquer coisa, mas é preciso ter crenças para poder seguir vivendo. E a vida não é justa, isso é verdade. Afinal justiça é uma construção moral humana, e a vida é muito mais do que humana, a menos que consideremos que tudo o que se julga vivo seja qualquer outra coisa e se crie uma narrativa em que a única coisa que realmente vive, somos nós, os humanos.
          Isso poderia explicar porque estamos destruindo sistematicamente tudo aquilo que não nos pareça humano, até mesmo outras pessoas. Mas essa conversa fica para outro momento, quando houver detalhes que justifiquem esse diabo de narrativa.
Até lá...


Danny Marks

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

O Ponto Mais Alto de um Salto é a Queda.

          É preciso que você entenda que vai cair em algum momento. Quanto mais alto você subir, quanto mais você alcançar, quanto mais você se esforçar, maior vai ser o impacto quando você for derrotado.
          É preciso que você entenda que tem todo o direito de se revoltar contra isso, de chorar, de achar injusto o resultado, de querer amaldiçoar o destino. Mas isso não lhe dá o direito de não reconhecer a vitória do outro, como desejou que reconhecessem a sua vitória.
          O famoso Espírito Olímpico se baseia justamente nesse princípio, de que não importa quão bom você seja, vai acabar sendo superado em algum momento, provavelmente no que mais precisar vencer. Mas não importa quantas vezes você caia, e sim quantas vezes você vai conseguir se levantar e começar de novo.
          A grande batalha na vida não é necessariamente contra a adversidade que sempre vai aparecer, mas contra si mesmo. E essa é a mais dura batalha. A vida sempre vai bater forte, vai cobrar o máximo, vai fazer todas as suas conquistas serem apenas uma página virada, tão logo sejam conquistadas.
          Você pode perder muitas vezes, mas jamais pode se deixar derrotar. E a derrota vem quando deixa de acreditar que pode fazer de novo, que pode tentar outra vez. E pode até se surpreender que a sua melhor vitória não tenha sido alcançada no seu melhor empenho, mas por uma conjunção de fatores que fez com que, naquele momento, fosse tudo o que precisava ser feito, e você fez.
          Jogos Olímpicos são ótimos para ilustrar essas lições. Quantos conseguem avançar de forma implacável nas preliminares, derrotando favoritos, apenas para perder no pior momento em que isso poderia acontecer e ver todo o trabalho de anos se esvair em poucos segundos de um resultado negativo?
          É fácil ser um vencedor. Somos treinados e impulsionados por todos os lados para que sejamos vencedores. Cobrados o tempo inteiro para ser vencedores a todo momento. Cobrados para continuar sendo vencedores, mais do que os que nunca o foram. Só não somos treinados para lidar com o resultado negativo que, invariavelmente, vai nos alcançar.
          É nesse ponto que se pode reconhecer os vencedores de verdade. Talvez não entre os que recebem os louros da vitória, mas entre os que apesar da derrota continuam acreditando no que fazem e sabem reconhecer que alguém foi melhor, o que não invalida o fato de que fez o melhor que podia naquele momento.
          Há aqueles que ao alcançar o topo, acreditam que conquistaram o seu lugar de direito, comportam-se como se apenas confirmassem um fato natural. Mas esse é o primeiro passo para a queda inevitável. Serão vencidos pela própria base que não construíram para se manter acima. E as bases são feitas sedimentando ao longo do caminho as derrotas e as falhas, aprendendo a lidar com elas como sendo naturais em um processo que é doloroso, difícil, que vai exigir constantemente a dedicação e a coragem de superar os obstáculos internos e externos, aceitando o que pode e o que não pode ser feito, e se preparando para ir além, depois de conhecer bem os próprios limites.
          Deveríamos estar sempre atentos aos que fazem dos resultados ruins a base onde construirão a sua fortaleza, porque não é apostando no que somos bons que se vence, mas trabalhando no que precisamos melhorar. E cair pode ser o melhor impulso que recebemos para voltar a subir. E aplaudir os que conseguiram se superar e nos superar é agradecer por terem mostrado que é possível ser feito, que sempre haverá uma chance única de ir além, e depois outra chance única de tentar novamente.
          O maior salto que se pode dar, tem que pressupor a queda que inevitavelmente se dará, e esta é a que determinará quantos e quão alto poderemos saltar de novo e de novo, porque vencedores são aqueles que sabem que é preciso se levantar sempre, até que se possa descansar em paz.
          O Espírito Olímpico muitas vezes é melhor representado por aquele que está quase em último lugar, mas acaba arrumando forças para apoiar o adversário que está quase desistindo, e ambos chegam ao final da prova como vencedores no seu pior momento, pois só nos piores momentos é que descobrimos o quão vencedores podemos ser.


Danny Marks