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segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Século XXI


Quem tem mais de cinquenta, como eu, provavelmente deve estar com a mesma decepção em relação a esse futuro que nos alcançou depois de longas batalhas para o realizar. Porque o futuro não chega sem muita luta, fica resistindo ferrenhamente e precisa ser arrancado à fórceps dos sonhos para finalmente gritar, para nossa alegria, quando nasce cheio das melhores expectativas.
Os primeiros momentos são de todos, um pedaço de cada um. Aquele olhar de esperança é dos avós, não notou? E aquelas ideias na cabeça, tão ralinhas, uma pendendo para um lado, outra para o outro, não é a cara do pai? Mas a força com que reclamou ao nascer, os berros que todos ouviram, isso não há dúvidas que é da mãe. Há sempre um vínculo com o passado, que lhe serve de base, em cada novo século que nasce.
Talvez por isso todo século quando nasce é feio. Enrugado de estar mergulhado em ideais por tanto tempo, só curtindo a vida nos sonhos que nem precisam se realizar, chamam-se apenas de futuro. Ninguém espera de fato que as expectativas se realizem, são mais para se ter algo em que pensar quando se namora, juntinho de conchinha, agarradinhos embaixo de um cobertor quentinho enquanto o frio fica do lado de fora, entre um amor e outro, até que haja um sexo gostoso que faz esquecer de tudo.
Talvez tenha sido esse o problema, o sexo. Desde que liberaram geral no século passado, com a queima dos sutiãs e o amor livre regado a muito rock´n´roll e rebeldia, as coisas ficaram mais soltas. Depois veio a ressaca, os peitos cansados da gravidade voltando para sutiãs de bojo a fim de parecerem mais firmes, volumosos, as ressacas homéricas que levaram a batidas ferozes, distorções, desconexões, em rituais sexuais estilizados. A rebeldia ainda tentou se manter firme, rebelde até mesmo na decadência. Importante era se revoltar contra qualquer coisa, e haviam tantas.
Ficou tudo tão disperso que os laços ficaram frágeis, esgarçados como lençóis amarrotados depois uma noite de amor intenso, a louça do café da manhã se juntando com a do jantar e esperando que alguém tivesse a dignidade de lavar os pratos antes dessa pirâmide desabar sobre a própria base. O homem foi para a lua a pretexto de trazer o universo para a amante, mas esqueceu o que tinha ido fazer lá, voltou de pedras nas mãos. Pedras que substituíram flores, muros quebrados que se tornaram mais pedras, e quando haviam tantas pedras no caminho, a poesia perdeu espaço e ficou concreta, armada. Começaram a atirar nos outros restos do sonho que acabou.
A esperança estava logo ali depois da curva, na virada do século que prometia ganhar novamente espaço, ciberespaço, que juntaria lugares mais distantes que o olhar diferente. Criar pontes e achar novos caminhos que nem se sabia existir. O amor estava no ar e o sexo nas veias eletrônicas de uma nova realidade, mais forte, bondosa para com os desprotegidos de além, na esperança que outros cuidassem dos daqui. Resgatar a natureza depredada, compartilhar riscos e ideias, juntando grupos de semelhantes em uma aldeia global que faria a roda do progresso girar e trazer soluções para todas as doenças do corpo e do caráter. Faríamos contato com outras inteligências de outros mundos que nos abraçariam em irmandade para salvar o planeta e a nós mesmos, no futuro.
Quando o século XXI nasceu, a contragosto, veio marrento em sua arrogância imatura, fruto de lar desfeito em valores penhorados. Criança birrenta, egoísta, que constrói castelos com pedras atiradas para olhar de cima das muralhas com ar reprovador das diferenças, na certeza individual de que é rei e o universo deve se curvar à sua vontade e sua inquestionável expertise superior. O olhar obeso acima do outro, a crítica chovendo acida em solo infértil, de rios contaminados e mar alagado.
Contatos com outras civilizações? Só se for para sexo voraz, descartável na saciedade individual, a posse sem retorno, que sinta o privilégio de me ter e esqueça essa coisa de ter sua vontade. Deixa de frescura que a vida é dura e vai penetrar onde houver espaços, caminhos fálicos, gente de armadura.
Solitário para não se ferir, cresce gigante o medo do desconhecido, espelho escurecido, revelado em fotos de nudes que deixa vazar nas redes, tentativa de ser capturado para não fazer tantas escolhas difíceis.
O que aconteceu de errado? Entramos com velocidade excessiva na curva e derrapamos em direção ao abismo? Ou apenas descobrimos que o mundo não é do jeito que pensávamos, com a nossa cara? Nosso jeito pode não ser o melhor, mas para que aprender se já acostumamos a ser? É preciso fazer a criança crescer de forma correta, perceber os erros dos pais e dos avós e não ter que os repetir, velhas lições só se forem estruturais. Não reinventar a roda, aprender a usa-la, descobrir coisas novas sem medo de ser velhos demais para aceita-las e nos permitir renovar.
É preciso olhar para o passado, não em busca de velhas respostas para os mesmos problemas que não foram solucionados. Olhar para frente e evitar saudosismos inúteis, reinventados pela lembrança adocicada da memória, buscando a sabedoria que nos fez chegar aqui. Tentar criar novas sabedorias que conduzam ao próximo século, sem gosto amargo de decepção e olhar crítico de quem já viu coisas demais, porém não reconhece as mesmas perguntas, os mesmos erros que insistem em se manter firmes, enquanto não os resolva definitivamente.
Então poderemos verdadeiramente conquistar o espaço, abraçar novas civilizações, que descobrimos não estarem no mundo da lua onde as fomos buscar, mas aqui ao lado, na casa do vizinho que, inadvertidamente, nos deixou entrar e que agora não sabe mais o que fazer com a nossa presença constante e vigilante. Descobrimos ter uma coisa em comum com esse vizinho, o medo. Mas podemos descobrir que há outras, tanto melhores, em comum, como o desejo de ser feliz, de ter o seu espaço respeitado, de ter oportunidade de fazer escolhas diferentes e descobrir onde nos levam e que podemos aprender, ou nos decepcionar, com o que for encontrado. É preciso que isso seja feito, ou as próximas gerações não terão o privilégio que tivemos de ultrapassar limites do desconhecido, só para descobrir um espelho que nos revela como somos de fato, não como imaginamos, e que nos cobra a parte da responsabilidade de lidar com um sonho, que acabou virando a realidade em que vivemos. E que a poesia tenha esperança em nós.

Danny Marks

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Para (de querer) ser escritor


          Devo confessar-lhe, amigo, que fiz uso de suas palavras e recomendações, quando lhe expus a vontade que me assolava a alma desde tenra idade, que bons ventos a levem.
          Comecei, no intuito de capacitar-me completamente para a tarefa auto imposta, a colecionar as dicas que versejam em generosidade nestes tempos em que, praticamente todos, abusam de egoísmo.
          Juntei boa sorte de livros dos grandes mestres, alinhados de forma a poder devora-los, ao menos quatro por mês, de forma que a quantidade de páginas não ultrapassasse um total de vinte páginas por dia, tendo o cuidado de considerar os que tinham mais de trezentas páginas como sendo dois exemplares e não apenas um, porque é preciso parcimônia no planejamento.
          Reservei na casa um local em que pudesse ficar completamente tranquilo, longe de qualquer distração quando me dedicasse a escrever diariamente, ainda que nada significativo fosse produzido, e confesso que isso deu-me mais trabalho que imaginava.
          Pensei no que poderia me distrair ao escrever, e comprei tampões para os ouvidos. A fome e a sede poderiam ser aplacadas facilmente se instalasse um frigobar com algumas comidas rápidas e bebidas. Por uma questão de espaço tive que arrancar o box e o chuveiro para instalar também a mesa com o computador e a conexão de internet, mais a estante para os livros.
          Me inscrevi em várias redes sociais e baixei algumas horas com podcasts com entrevistas de vários autores, além de vídeo-aulas com os maiores gurus da atualidade. Instalei uma barra de exercícios e comprei dois pesos de dois quilos e uma esteira que ficou encravada na porta, mas que, quando desligada, permitia a passagem.
          Deixei algumas outras coisas de fora, afinal é preciso ir com calma no começo, e essa coisa de escrever profissionalmente é para ser levada a sério, como um projeto de vida. Tem que ter consciência das dificuldades e ir superando os obstáculos aos poucos. Em uma semana já estava fazendo exercícios físicos enquanto escutava as vídeo-aulas e podcasts e pensava nos comentários das redes sociais que iria escrever, antes de ler algumas páginas.
          Dentro de dois dias completo o primeiro mês nesse treinamento que vai garantir que o meu livro seja um Best Seller quando for lançado, já tenho até uma lista e um cronograma das editoras que vão receber o original para avaliação assim que ele estiver pronto.
          É uma experiência fantástica que estou vivendo, sabe? E não sei por que os meus familiares se mudaram, está ficando difícil conseguir alguém para abastecer o minibar e comprar um desodorizador de ambientes. Tudo bem que tenho pulado o banho, ultimamente, mas é que os comprimidos antidepressivos que roubei do médico que veio me visitar não estão mais funcionando, e o café com vodka também não.
          Já me expulsaram de quatro comunidades e denunciaram três vezes o meu perfil, mas tudo bem, eram apenas fakes e já criei outros que também foram denunciados. Esse pessoal não colabora, a inveja é terrível no mundo de hoje.
          Perdi um dos pesos que foi projetado pela janela quando caiu na esteira que estava em alta velocidade, mas não me atingiu porque estava fazendo umas flexões na barra antes de ler mais algumas páginas dos livros que já quase terminei.
          Estou só entrando em contato para saber se posso considerar como escrita os meus posts nas redes sociais que tenho colecionado para ver se algum dia tem algo que se aproveite para publicação. É que estou meio confuso quanto ao tempo que tenho que dormir para poder cumprir toda a rotina e já não sei mais se aquela história em que o Foucault atira em Cthulhu com o robô que estava em cima da lareira de Westeros, e se transforma no saci-pererê para fugir com a branca de neve para o país das maravilhas foi uma inspiração que tive em um sonho ou se realmente escrevi essas páginas.
          Mas de resto está tudo bem, não vejo a hora de começar a escrever o romance que vai revolucionar o mundo. Qual era mesmo o título?


Danny Marks

Aviso Importante

A partir de hoje o Ossos Crônicos passará a ser semanal devido a necessidade do autor de se dedicar mais ao seu trabalho. Inicia-se hoje a jornada de confecção de mais um livro que tem o título provisório de Fome de Viver.
Até que esteja concluso, Ossos Crônicos apresentará seus textos inéditos apenas uma vez por semana. Quem desejar pode ver textos mais antigos, inclusive de outros autores e notícias sobre literatura, no Retratos da Mente ( www.osretratosdamente.blogspot.com ).
Tenham uma boa leitura e voltamos a nos ver em breve! 

Danny Marks

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Vira-lata de Pedigree


          Uma vantagem de se ficar um velho escritor, e ainda bem que há algumas nisso, é que já se viu tanta coisa tantas vezes que elas começam a fazer algum sentido. É quase como virar um historiador, antropólogo, um sábio investigador das culturas passadas, um Joseph Campbell amador.
          Não quero falar da Jornada do Herói, talvez o monomito mais conhecido da história da humanidade. Ok, tem aquele outro, e esse aí também, mas vamos deixar assim. Que tal falar sobre algo da modernidade, que está nas bocas e nas docas? Quem já ouviu falar dos efeitos benéficos da crise?
          É exatamente isso o que quis dizer: Os efeitos benéficos da crise. Quantos livros foram criados, quantas reportagens foram feitas, quantos “cases” de sucesso foram estudados e divulgados por grandes figuras carismáticas? Basta ter uma crise econômica e a palavra de ordem passa a ser: reinvente-se!
          Aqui no Brasil é sempre a mesma coisa. Assim que a crise começa, culpa-se o governo pela crise, começa-se a falar em fugir do país para outro lugar melhor que fica em qualquer lugar que não aqui, pipocam os depoimentos de pessoas que largaram tudo (uma boa carreira de sucesso, uma vida confortável, carro de luxo, etc.) e se lançaram em alguma aventura em busca da verdadeira felicidade.
          Nesse ponto a crise avança e fica mais difícil para todo mundo, é o momento de dizer que a culpa é do povo que não sabe fazer as coisas direito, que se vende por qualquer circo que se apresentar, que o melhor é que morresse uma boa parte dos bandidos (que são todos os outros que não concordam com quem fala) que só sugam nas tetas da sociedade, cresce o fanatismo, a revolta, o radicalismo, as manifestações violentas.
          E a crise avança mais um pouco, e chega o momento de promover a reinvenção, de revelar as pessoas que conseguiram através do próprio esforço driblar a crise e até crescer nos negócios. Empreendedorismo, o futuro está nas suas mãos. O sucesso só depende da sua capacidade de correr riscos e se aventurar em alguma coisa que vai dar certo, se você se empenhar com a alma e todas as economias, suas e de parentes e amigos que conseguir aliciar.
          É quando o monstro vira seu amigo, o governo começa a tentar ajudar a reaquecer a economia, o povo é a melhor coisa que este pais tem, somos todos guerreiros, não desistimos nunca, os sacrifícios são necessários para garantir a vitória que está garantida para quem chegar lá no final do túnel. As oportunidades aguardam depois da curva.
          E as coisas finalmente melhoram, conseguimos virar a própria lata e subir ao pódio mais alto do pedigree. Somos todos campeões, os que sobreviveram. Ninguém fala nos mortos, feridos e falidos; os inocentes que sempre acabam tombando nas guerras para melhorar as coisas, para voltar a ordem, e se não estamos entre eles, é porque deu certo, ou porque não somos inocentes.
          Mas ao contrário do que julgam os brasileiros, isso não é atual ou acontece apenas aqui. Basta olhar para a literatura sobre o assunto de forma mais isenta, sem óculos cor de rosa, ou cinza. Quem já conheceu Dilbert e seus pares, sabe que o discurso é o mesmo, seja na Ásia, seja na Europa, seja nas Américas. Não adianta perguntar quem mexeu no seu queijo, nem conhecer profundamente o seu inimigo.
          O momento é para um tipo específico de literatura. Recomendo como referência Joseph Campbell, com seu monomito do Herói, que é apenas uma representação figurativa do ritual eterno da passagem da vida infantil para a adulta: a adolescência.
          A adolescência é uma invenção moderna para uma fase da vida em que se enfrenta a crise (outra invenção moderna) e se tem que provar que está apto a viver uma vida adulta (ou morre-se no processo, sendo um pária para sempre). Qual a novidade?
          A sociedade em que se vive, seja em que país for, também tem as suas fases de adolescências, fabricadas ou não, de forma a se fechar ciclos e... começar tudo de novo. Cada geração vai ter que enfrentar ao menos uma crise global, cada geração vai ter que suportar os seus mortos e monstros, cada geração vai ter que se “reinventar” para permanecer no modelo definido.
          Alguns criam as “contraculturas” que rapidamente são absorvidas depois da “farra” e o sonho acaba. O largar tudo só funciona quando se acumulou reservas suficientes para se manter vivo em outro lugar até que as coisas se acomodem e se consiga uma nova forma de voltar ao velho esquema, na maioria das vezes ao custo da geração seguinte.
          O que fazer então? A resposta seria meio óbvia, precisamos atingir a maturidade como sociedade, incorporar a pluralidade racial ao nosso pedigree e assumir que somos sim, vira-latas e isso só nos torna mais resistentes, mais eficientes, mais rápidos e capazes de nos adaptar, abandonando completamente o ideal de pureza que só o herói pode ter, e que, na verdade, poucos alcançam.
          Isso seria dizer que podemos abandonar completamente toda a mítica da jornada do herói e começar a construir um novo monomito que vai sustentar e orientar o futuro da humanidade, mas existe uma forte resistência Luddista a isso, para equilibrar a balança e tornar a crise (e o ciclo) necessária. Até que o monstro ganhe no final.


Danny Marks

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

O Leva e Traz do seu Néscio

                Se tem uma coisa que seu Néscio sabe é levar e trazer. Desde que se aposentou (e nem queira descobrir o que ele fazia antes a menos que tenha todo o tempo do mundo a sua disposição), e virou taxista em São Paulo. A vida se resume em levar e trazer as pessoas. Quando não fica.
          Tem vezes que fica no ponto de taxi, só esperando a clientela ligar para marcar alguma jornada, e de vez em quando pegar alguns bicos, porque a prioridade é dos clientes. E cliente do Néscio ninguém leva, só ele. Até parece que se fica com algum sinal oculto, os taxis se aproximam, mas quando percebem que é cliente do Néscio, vão embora vazios e o jeito é ligar para ele, quando já não ligaram antes.
          O Néscio não tem agenda, o negócio dele é celular. Tem tudo no celular e na cabeça, desde o seu número de telefone até fotos que ele busca nas suas redes sociais para poder socializar melhor. Saber como está a sua mãe, o cachorro, o papagaio, a planta que levou para casa a semana passada.
          E aquela moça que se machucou outro dia? Trabalha para o senhor, não é? Já está recuperada? Quer que vá buscar no hospital quando tiver alta médica? Se precisar de fisioterapia pode ligar a qualquer hora do dia ou da noite que se tiver alguém no carro dou um jeito de despachar logo.
          O carro do Néscio não é um Uber, mas tem sempre um jornal para poder ler qualquer coisa, a opção é conversar com o Néscio sobre algum dos milhares de assuntos que ele domina, ou ouvi-lo falar sobre alguém que conhece. Tem também uma água, se precisar molhar a garganta, e um dropes de menta no bolso da calça para uma emergência.
          Um dia desses tendo esquecido de comprar o jornal, seu Néscio me empurrou a história de um outro cliente que levou ao meu oftalmologista. Era isso ou dropes de menta. Fiquei com a história.
          Tinha pego o tal cliente em casa e percebeu que estava com a vista ruim, claro que foi logo avisando do problema, e a pessoa disse que estava indo no oftalmologista, se ele sabia onde era. Assim que viu o endereço foi logo dizendo que já que tinha me levado lá, descreveu todo o consultório e o estacionamento que era pequeno, mas ele poderia ficar dando umas voltas para fazer hora e depois era só ligar que vinha buscar a pessoa para levar para casa.
          O Néscio é assim, leva e traz, não tem essa de fazer as coisas pela metade, mas como já sabia que o médico demorava para atender, era daqueles antigos que ficavam conversando com o paciente e fazendo exames e tudo, achou melhor ir no banheiro antes de iniciar a espera. Tudo bem deixar o taxi no estacionamento para clientes enquanto ia no banheiro, né?
          A recepcionista deixou, o que fazer, mandar se virar no carro? Há casos em que a civilização conspira para o seu próprio fim, mas tudo bem, indicou o local do alívio e continuou o seu trabalho que não incluía recepcionar taxistas.
          Mas para alegria do seu Néscio o consultório é daqueles que parecem Uber, tem café, cappuccino, chá, chocolate, agua e bolachas. Uma variedade bem grande de bolachas, todas ótimas, pode acreditar, experimentou pelo menos duas de cada para ter certeza. Se tivesse um pãozinho era melhor, quem sabe até alguns daqueles tabletinhos com manteiga ou geleia. Sempre tem nos hotéis de luxo, mas consultório, já viu, né?
          Nisso, entre uma bolacha e outro café, aparece o médico e é claro que seu Néscio não perde a oportunidade de fazer o social, afinal quem lida com o público a tantos anos como ele, tem que saber fazer um social, né?
          O senhor lembra de mim? Trouxe aquele outro cliente outro dia aqui. Isso o da pasta marrom. Administrador, exatamente, ótima pessoa, cliente antigo. Hoje não, trouxe aquele outro ali. Por falar nisso, vai demorar mais ou menos quanto tempo? É que se for logo nem fico dando volta, a menos que possa deixar o taxi no estacionamento.
          Tive que descer, aqueles dias que São Camilo, o protetor dos usuários de taxi faz com que o transito esteja bom e se chega rápido ao destino. Nem deu tempo de perguntar o nome do outro cliente, mas anotei na minha agenda para mudar de oftalmologista ou ir com carro próprio, no próximo ano, quando voltar lá.
          Creio que é o mesmo senhor que anda fazendo uma forte campanha para que legalizem o Uber em São Paulo ou, pelo menos, que coloquem aquelas barreiras entre os bancos dos taxis, a prova de balas e só com uma pequena abertura para passar o dinheiro. Tudo para que o seu Néscio continue levando e trazendo as pessoas em paz.
          Achei um pouco exagerado, a princípio, mas depois fiquei pensando a respeito e até estou tentado a confirmar o nome do cliente, só para ter certeza que é o mesmo ou se já criaram uma associação de clientes do seu Néscio. Acredito que vale a pena andar algumas quadras de taxi para poder assinar a lista da petição para o governador. Mas não conte para o Néscio, deixe que seja uma surpresa, ele merece.
         

Danny Marks

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Você não é tão especial assim


          O sistema solar é composto de uma estrela central, chamada de Sol, e diversos corpos celestes sob sua influência gravitacional. Os quatro planetas mais próximos do Sol são Mercúrio, Vênus, Terra e Marte; mais afastados tem os quatro gigantes gasosos, Júpiter, Saturno, Urano e Netuno; além desses existem os cinco planetas anões, Ceres, Plutão, Haumea, Makemake e Éris; sem falar em inúmeros corpos menores que permeiam praticamente toda a extensão do sistema solar.
          Apenas na Terra existem Ipês Amarelos, uma das 298 mil espécies de plantas que encantam os humanos. Humanos são uma das 7, 77 milhões de espécies animais que, ainda este ano, ultrapassou o número de 7 bilhões de indivíduos, sendo que a grande maioria deles acredita que algum ser divino criou tudo isso (os Ipês e todo o resto do sistema solar, por exemplo) só para que ele pudesse ter uma boa vida. Nenhum problema quanto a isso, crenças são úteis para nos conduzirem em algum determinado caminho quando tudo o mais falha e necessitamos de algum conforto extra.
          A Zenilda, por exemplo, acreditava que o Ambrósio nascera para pagar as contas dela e fazer-lhe as vontades. Não, o Ambrósio não era um gênio, apenas um humano que tinha conseguido juntar uma grande quantidade de bens e valores que a humanidade chama de forma genérica de fortuna. Ambrósio, portanto, era rico; por consequência, Zenilda e os filhos (junto com Ambrósio) também se sentiam ricos, afinal eram casados (a Zenilda com Ambrósio e os filhos com uma qualquer, segundo a mesma).
          Os mais atentos vão dizer que cometi um erro com Ambrósio, ao dizer que não era um gênio. Mas os fatos demonstram que não era mesmo, por dois motivos justos. O primeiro é que o Ambrósio foi a falência (embora a fortuna tenha durado um bom tempo antes de acabar), e o segundo é que não suportou o baque. Não, não morreu por ter falido, nem mesmo dos gritos da Zenilda quando soube. Sofreu um infarto e caiu duro no chão e ainda teve um traumatismo craniano que, segundo a Zenilda, estragou um ótimo tapete que estava na entrada da casa.
          Segundo a vontade do Ambrósio, o melhor seria cremar e espalhar as cinzas em um belo lugar. Dele, não do tapete, que um dos filhos disse que daria uma limpada para poder vender para um amigo turco. Como conhecido da família, fui convidado para a cerimônia fúnebre. Até porque precisavam de alguma ajuda com os tramites, afinal era o Ambrósio quem (em vida) fazia tudo, não deixava a Zenilda nem ir no banco para ver o saldo da conta bancária, o que deve ter sido um dos fatores que o levou a falência.
          Claro que providenciei a cerimônia de despedida e até indiquei como poderiam proceder com a cremação do Ambrósio. Poderia ter cremado o tapete também, mas tem coisas que é melhor deixar ir, e fui.
          O Ambrósio até estava bem no terno que tinha usado no casamento, há seis meses, em que tínhamos nos encontrado pela última vez. Foi quando soube da falência e dos seus planos para lidar com ela. A Zenilda também estava usando as mesmas joias do casamento (há coisas que se relutam em esconder, mesmo nos piores momentos), mas usava outro vestido, um verde escuro (“fico horrível de preto, jamais! ”, alguém deve ter-lhe dito que o vermelho decotado também não causaria boa impressão naquele momento).
          Os filhos do Ambrósio deram uma passada rápida, mas logo tiveram que sair porque tinham outro compromisso inadiável. Deram um beijo na mãe e saíram com alguma moça qualquer, não as esposas, porque já haviam se separado novamente. Dei uma olhada em uma delas quando já entrava em um taxi e tive a impressão que o vestido branco lhe caia bem no corpo de modelo.
          A situação exigia que vencesse as reservas que pudesse ter e me aproximasse da viúva inconsolável e, naquele momento, sozinha. Amigos, mesmo que não sejam gênios ou que estejam falidos ou falecidos, merecem a nossa consideração até a despedida final, e isso se estende aos que lhe eram caros. Duvido que alguém fosse mais cara que a Zenilda, para o Ambrósio, então fui prestar os meus sentimentos, como manda o código de bom amigo.
          Tão logo me aproximei a Zenilda desabafou, devia ter se segurado muito até aquele momento.
          — Não sei como o Ambrósio pode fazer uma coisa dessas. Imagina nos deixar em uma situação assim? E agora? O que vamos fazer? Nem ir ao banco eu sei, e os meninos? Nunca trabalharam, isso é coisa para pobre! Estou inconsolável.
          Realmente, que coisa feia, não é Ambrósio? Como pode simplesmente ter sofrido um infarto sem ter ao menos resolvido a questão da falência? Um verdadeiro descaso com a família, um verdadeiro absurdo. Tem gente que só pensa em si mesmo. Agora o que será da coitada da Zenilda, e do meu lenço de seda que deixei com ela para secar as lágrimas, aproveitando para me afastar rapidamente e pegar o primeiro taxi que encontrei? Depois tive que pedir para alguém buscar o carro no estacionamento do cemitério que pretendo não ver tão cedo. Essas coisas mórbidas acabam desestabilizando a gente.
Quando liguei para o crematório para saber se tudo estava nos conformes soube que os familiares do Ambrósio tinham acatado a sugestão dos funcionários de jogar as cinzas nas arvores próximas. É o procedimento quando os familiares demoram mais que trinta dias para retornar. Creio que o Ambrósio não deve ter se importado por um detalhe insignificante desses. Afinal o principal é saber que a nossa importância está naquilo que deixamos para as pessoas que nos são caras, depois que viramos poeira em um planeta que nem é tão importante assim, em relação a todo o Universo.
A Zenilda? Não sei, nunca mais soube dela ou dos filhos e netos. Acho que nem ela sabe. Mas todo dia quando abraço os meus familiares, lembro do Ambrósio, que não era nenhum gênio, mas que me deu uma ótima lição sobre valores que nunca vão à falência. Grande Ambrósio, que os Ipês amarelos o tenham sob sua sombra. Amém.


Danny Marks

terça-feira, 13 de setembro de 2016

A Terceira Idade de Adão


(Pré-História)

Minha infância? Ah, o melhor tempo da minha vida, um paraíso. Aquilo sim era vida boa.
Todo dia, quando acordava, ia colher frutas e raízes. De vez em quando dava para pegar algum bicho para o almoço. Carne malpassada, cortada no dente ou na pedra. Naquele tempo era tudo na base do “pau, pau, pedra, pedra”, não tinha essas frescuras de hoje. Quando acabava as frutas ou vinha o frio, a gente se mudava. Ia para outro lugar melhor. Verdade! Sempre tinha um lugar melhor para ir.

(Extinção dos Neanderthais)

Fogo? Isso foi depois, sabe? Nem sei quem veio com essa novidade assim de repente. Teve um que disse que era coisa do céu, sei lá. Mas logo já era coisa nossa, até que gerou discussão. Tinha uns vizinhos que a gente não se dava bem, sabe? Uma gente meio rude, não que nós não tivéssemos boa vontade, mas sabe como é. Gente rude é fogo, se deixar se espalha e já era. Tivemos que dar um jeito neles, para pararem de incomodar, entende?

(Antiguidade)

Com o fogo deu para ficar mais tempo parado, comer melhor. Aí veio o metal, as plantações. Facilitou bastante as coisas, não precisava sair para conseguir comida boa. A mulherada deu para fazer roupa e fofoca, civilização é assim. Foi nessa época que inventei a escrita. Tinha que ir para a escola aprender, nada dessa coisa de pintar caverna o dia todo e tudo bem. Nem a caverna dava mais para acomodar tanta gente. E como tinha gente, meu pai! Tinha uns que trabalhavam e outros que ficavam pensando sobre as coisas, e sempre tinham coisa para pensar.

(Império Romano)

Então veio aquela turma que queria expandir os horizontes e mostrar que o nosso jeito de levar a vida era o melhor, quer dizer, o único que deveria haver, assim não dava problemas. Época boa essa, disciplina do exército que molda o caráter. De vez em quando a gente invadia um pais aqui e ali e colocava ordem na casa. Promovia a paz, nem que fosse na marra, sabe? Aqueles povos ignorantes que não sabiam o que era a paz, a gente ia lá e mostrava para eles. E as coisas ficavam em paz, de um jeito ou de outro. Depois era só cobrar uns impostos para manter as coisas certas.

(Povos Bárbaros, Cruzadas)

Teve um tempo que foi muito louco, sabe? Bateu aquela vontade de quebrar as regras. Tinha regra para tudo quanto é lado e ninguém aguentava mais. Pegamos os metais de novo e as coisas ficaram bem punk. Foi um tempo bárbaro, entende?
Briga? Ah, teve umas brigas danadas com uns caras que eram meio que esquisitos e moravam lá longe, onde não morava ninguém. Vizinhos, sabe? Sempre dá problema. Mas aqui entre nós, a gente já tinha aprendido a dar um jeito nos vizinhos. Ô se tinha...

(Idade Média)

Lembra daquela turma que gostava de ficar pensando? Então, teve uns que, sei lá, pensaram demais e começaram a escrever livro sobre isso. E resolveram ir além e escrever sobre coisa que ninguém viu. Cada ideia muito louca, mas sempre que tinha alguém que não ia na onda, faziam um churrasco, queimavam uma carne aqui e outra ali e a coisa seguia em frente. Com o tempo todo mundo ficou meio que maluco também. Uns queriam inovar tudo, outros queriam voltar tudo ao que era antes, outros nem sabiam o que queriam, dai inventavam um monte de coisa diferente. Ficou tudo muito obscuro nesse tempo, mas na Média a gente se superou. A gente sempre se supera e faz história, entende?

(Idade Moderna, Reforma Protestante, Iluminismo, Rev. Francesa, Rev. Industrial).

Aí veio a coisa da modernidade, você nem imagina. Foi muito forte isso. Sabe o que é máquina? Então, era máquina sendo criada para fazer e desfazer coisa de gente. Era um tal de reforma para lá e reforma para cá, umas coisas de renascimento, de iluminar tudo, como se já não tivesse fogo suficiente. Só sei que teve muita gente que perdeu a cabeça nesse tempo. Mas eu não, segui firme e forte, macaco velho não deita em galho podre, só vai no balanço.

(Independência das Américas)

Quando as coisas ficaram muito chatas, resolvi que o melhor era mudar de ares de novo. Sempre tive essa coisa de nômade, de querer ser livre. Aquela turma só pensava em castelos e além. Não dá, né? Chega um momento que a gente tem que crescer, cuidar da família, arrumar um lugar para ficar, essas coisas. Terra tinha, nova, lá do outro lado do mundo. Mas não dá para ter uma boa ideia e logo junta gente querendo fazer igual, chamar aquele chão de seu. Sem falar que tinha uma gente rude por lá que, sabe como é, né? 

(Primeira e Segunda Guerra Mundial, Guerra Fria, Movimento Hippie, Conquista do Espaço)

Foi uma guerra sabe? Por aí dizem até que foram duas, que quase viraram três, mas deram uma gelada na turma e a coisa sossegou. Não adianta nada você arrumar mais espaço se não pode fazer nada com ele porque está brigando com vizinho. O jeito foi fazer um acordo e dividir as coisas que sobraram. Até parecia que ia funcionar, que ia dar para relaxar e aproveitar os bons tempos, curtir as flores, plantar o amor e o que mais desse. Curtir aquele som na paz e na alegria. Que nada. Foi só dar uma relaxada e lá vem os que não vivem sem pôr fogo em alguma coisa. Gente rude.

(Criação da Internet)

Mas tem algo que acaba incomodando, cutucando a gente quando menos espera. O negócio era ficar de olho no que o vizinho estava fazendo. Teve até umas tais de redes sociais que pegavam a gente mesmo. Quando você dava uma distraída, já estava lá discutindo qual vida é melhor ser vivida e quem deve ter direito a ela e como, o que as pessoas devem fazer, como devem falar, com quem devem falar, essas coisas. O vizinho entrava na sua casa e você na dele e ninguém estava onde devia, não podia dar certo essa coisa, não é?
Não deu mesmo. As coisas foram ficando cada vez mais feias. E cada vez tinha mais gente no seu quintal e mais sol na sua cabeça. Então não teve jeito, tinha que dar um basta nessa gente rude.

(Utopia)

Acabei mudando pra Marte.
Isso sim que é vida boa.
Aqui tem pouca gente, e dá até para plantar e cuidar do almoço. Tem umas coisas diferentes que a gente precisa aprender a lidar ainda, mas não há problema. O negócio é seguir sempre em frente, colher o que planta e regar a vida. Isto aqui é o paraíso, sabe?

(Distopia)

Só tem um problema, aquele vizinho ali: a Terra. Vai por mim, gente muito rude aquela. Qualquer dia desses vou ter que dar um jeito.


Danny Marks

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Crônica de Segunda


          A minha crônica de sexta-feira causou uma certa comoção nos leitores. Talvez por ser em um estilo poético-filosófico que acaba mexendo com os conteúdos mais íntimos, ou por algum outro motivo que desconheço.
          Não houve críticas, sou praticamente órfão nesse sentido, apenas comentários, na maioria muito agradáveis de se ouvir. Mas ficou aquela coisa no ar, como uma interrogação maliciosa que não incomoda a quase ninguém. Só escritores se incomodam com interrogações. É quase uma obsessão ir buscar respostas, tramas por trás, intencionalidades ocultas ou veladas.
          Alguns dizem que ser escritor é uma patologia da qual não se quer a cura. Ou um vício que se cultiva com cuidado, em leituras e estudos que vão tornando ainda mais grave o estado, já agudo, até que se torne incisivo e penetra fundo em outro mundo. De que outra forma se explicaria essa necessidade que consome mais recursos do que se pode dar e se intensifica em cada pequeno sucesso, sem esmorecer diante das derrotas e dificuldades?
          Quem não é escritor talvez ache que o objetivo é ser famoso, ganhar muito dinheiro e ser reconhecido na rua e adorado por todos como um deus criador de alguma coisa impossível de existir de outra forma. A verdade é que isso nos encanta, por certo. A quem não encantaria? Fosse um empresário ou um motorista. Conheço motoristas que adorariam participar da Formula 1 ou Super Truck. Todos os humanos desejam o reconhecimento, o sucesso, o dinheiro que isso pode trazer e todo o conforto que imaginam obter quando houver dinheiro suficiente. Alguns se perdem nesse caminho, outros se acham.
          Não posso dizer como é ser escritor para outras pessoas, mas já pensei muito a respeito do que é ser escritor para mim e digo que não consigo ser outra coisa. Quero dizer, já fui várias coisas, é preciso sobreviver no mundo e cumprir responsabilidades, mas por trás disso tudo, sempre fui escritor. É aquela coisa de tempo integral. Você é escritor enquanto trabalha na indústria, ou cuida da casa e dos filhos. É escritor quando bebe um vinho ou uma cerveja com os amigos em algum barzinho da periferia, ou quando vai ao cinema e teatro; na praia não tem como não ser escritor. Você acorda, come, dorme escritor.
          É engraçado quando alguém lê algum texto seu e diz que você faz de forma tão fácil, que queria ser assim. Não é fácil, não na maioria das vezes. Quando alguma ideia te pega de jeito é capaz de ficar atormentando completamente os seus pensamentos e sentimentos. A insônia vem com a ideia que não se importa se tem que trabalhar no dia seguinte, logo cedo. E acompanha você no banho e no banheiro, se esfrega na sua frente enquanto tenta ler os relatórios do dia, se embrenha nas palavras que escreve. Exige a sua atenção até que você cede e começa a escreve-la, então ela diz que não. Faz um doce, finge que está magoada com o seu descaso, mas não o deixa seguir em frente. Uma vez que conquiste a sua atenção, é preciso algo muito forte para fazê-la largar a sua alma.
          Há vezes em que é fácil, e as coisas fluem de forma tão solta e maravilhosa que se sente pleno e transbordante. Orgástico, diz um amigo escritor. E assistimos o filme que vai se desenrolando cena a cena na nossa frente em uma exclusiva apresentação, inédita. E nos envolvemos de uma forma tão doce que desejamos levar essa experiência para o mundo, dividir com todos que queiram participar dela, falar ansiosamente sobre ela, torna-la imortal para que qualquer pessoa no universo possa usufruir daquele sentimento de união com a Ideia.
          É por isso que escritores precisam de público, para compartilhar aquele momento único com outros e torna-lo ainda maior. É como descobrir um lugar lindo, de beleza indescritível sem ter ninguém por perto. Dividir as alegrias da escrita com os leitores é reviver novamente a mesma alegria, a cada leitor que as acompanha, multiplicando o prazer que já se teve. Claro que um escritor pode escrever apenas para si mesmo, e o faz muitas vezes, mas a realização só vem quando há um público para repartir essa união de almas.
          Esse é o verdadeiro motivo dos escritores não conseguirem simplesmente deixar de ser escritores, nem quando enlouquecem ou se perdem, nem quando vendem todos os móveis da casa para investir em um livro novo que, desta vez, fará algum sucesso. Ser escritor é ter uma alma ancorada em vários mundos que a puxam em um cabo de guerra sem tréguas, é sofrer um parto em cada obra, desejar que cresça e se fortaleça com os atributos que pôde lhe dar na gestação e consiga enfrentar o mundo e se realizar por inteiro.
          Ser escritor é morrer em cada final, é viajar até na maionese sem sair do lugar e ainda assim ter a experiência mais maravilhosa da sua vida, até aquele momento, e não querer deixar ir, mas desejar a próxima com a mesma intensidade. É rasgar-se por completo e tiras, só para tentar juntar tudo de novo e de novo em uma outra configuração que, desta vez, talvez, seja a certa.
          Ser escritor é jurar por todas as letras que jamais vai voltar a se desesperar por causa dessa maldição. Que vai se libertar completamente e fechar a porta a qualquer ideia que tente arromba-la. É encher a cara de qualquer entorpecimento para poder resistir bravamente até o fim e pôr um ponto final nisso tudo porque já não aguenta mais.
          E então ser acariciado com palavras e saber, definitivamente, que não irá cumprir jamais o prometido, porque, como lhe foi dito “Você é exatamente o que escreve”.


Danny Marks

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Sou, estou, existo.

          A coisa toda começou com uma pergunta simples em um momento difícil. “Profissão? ” Estou credenciado como professor atualmente, mas já não exerço mais. Fui muitas coisas antes, mas agora não. “Então o senhor é professor...” Não, sou escritor, sempre fui, embora só tenha percebido isso com o tempo, com a escrita e as leituras que se vai fazendo na construção do ser.
          Confusa a pessoa me olha longamente, e o treinamento de professor, enraizado já na alma, quase como um acréscimo que se faz e que se costuma ignorar sua origem e confundir com o ser, assume o comando de fazer. Explico de outra forma.
          O que sou é algo anterior, aquilo que nasci para ser e que ainda não consegui realizar plenamente, mas que sempre serei, independente do que fizer. O que aprendi como profissão é outra coisa, também a de escritor, mas realizada ultimamente, a de professor, não mais. Agora não posso dizer que tenho a profissão de professor por não a exercer, pelo mesmo motivo que não posso alegar ser escritor por não estar reconhecido no exercício de fazer.
          Devo ter tocado um lado oculto do filósofo que, de profissão, era outra coisa. “Então podemos dizer que o senhor é escritor, mas está de professor? ”. Não, tenho que dizer, sentindo pena de desmontar um bom raciocínio lógico para não ser simplista, embora não completamente errado. Estava como professor, enquanto exercia docência, mas sempre fui escritor. Atualmente não estou nada.
          O filósofo vai embora e declara quase com pesar: “Desempregado, então”. Também não, isso implicaria que estou tentando voltar a trabalhar em alguma profissão, o que não é o caso. Na verdade, estou tentando realizar um estado de ser, escritor, e conseguir um espaço profissional para que possa ser reconhecido como profissional do fazer, a escrita.
          A existência vem antes do reconhecimento. Houve época em que os artistas eram considerados vagabundos, por se recusarem a trabalhar em algo que não envolvesse diretamente a arte. O que não os impedia de continuar sendo artistas, e se reconhecendo entre si, na maioria das vezes. Há vezes em que nem mesmo um artista reconhece outro, talvez porque esteja vendo pela natureza morta, a forma explícita que se congela em um instante, paralisando a degradação natural e roubando-lhe a alma para lhe implantar um sentido outro.
          Para existir não é preciso reconhecimento, apenas se é, faz sentido. Mas para existir em um determinado contexto, faz-se necessário construir um reconhecimento que o insira no modelo de reconhecimento imposto. É preciso cumprir o nivelamento que serve de base para o profissionalismo, a referência para o verbete do dicionário.
          Quando se é uma coisa, mas existe em outra forma, pode-se dizer que se está sendo aquilo, embora seja outra coisa. Dicotomia do século em que vivemos, onde fica mais fácil estar do que ser, mas é preciso mais que nunca existir no estar, e não no ser, se quiser sobreviver e continuar sendo.
          Antigamente um pintor nascia pintor, e pintava. Construía sua profissão quase sem escolas, seguindo a um ou outro mestre para aprender a ser melhor, mas não se ensinava a ser, ou se era ou não. Não havia escolas que ensinassem a ser, apenas a estar, e isso vem se tornando mais frequente e necessário. O tempo tem pressa de existir, mesmo sendo o tempo. É preciso contexto para o tempo ser tempo reconhecido, senão, é perda de tempo.
           Para os escritores a coisa foi mais difícil, foi preciso haver professores que ensinassem leitores a serem leitores, e só então haveria escritores reconhecidos como tal, embora nem todos escritores fossem de fato, mas na forma. Saber escrever é tão diferente de ser escritor quanto saber ensinar é diferente de ser professor. O mesmo vale para o cozinheiro, para o motorista, para o negociante, para o funcionário. Não existe de fato um limite para ser, pode-se ser qualquer coisa que se deseje, mas para ser reconhecido, aí sim, é preciso uma especialização. É preciso uma vida inteira para estar de forma que haja um sucesso no que se faz, quanto mais complexo for o que se faz, mas para ser é simples.
          Dizem que quando se consegue ser e estar no mesmo lugar, conquista-se a glória. Deve ser, são tão poucos que conseguem convencer os que estão à volta de quem se é, não quem está. As pessoas não gostam de ver tão profundamente, isso dá trabalho, exige um esforço a mais que impede de fazer outras coisas que não são, mas são necessárias para se estar. Por isso é preciso que o outro sempre prove que está antes de poder ser de fato o que faz. E as vezes é preciso não ser para poder estar.
          Os olhos denunciam que o filósofo se foi para não ter que lidar com a angustia de estar sem ser, ali na frente daquele que tentava existir. Um minuto de silêncio. As coisas podem ser constrangedoras nesses momentos. Fosse professor tentaria explicar melhor o raciocínio na busca do entendimento. Fosse filósofo, buscaria metáforas explicativas para o abstrato conceito de existir em um mundo de formas que contém, mas não representam.
          Pobre escritor, apenas escreve na esperança de que o leitor reconheça e, sendo leitor, entenda. Alma gêmea do escritor, o leitor se reconhece no outro ao reconstruir o mesmo trabalho e dar-lhe vida e significado de existir. Conversam sem falar, justificam-se mutuamente na alegria do reconhecimento, quando se encontram. Há momentos em que ser é extremamente solitário e a existência pequena diante do que poderia ser, mas por não ser reconhecido, desvanece-se como uma alma a caminho das estrelas. De volta ao lar.


Danny Marks

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Formador de Opinião


          Tem aqueles dias que você precisa de uma opinião, mas não encontra. Aconteceu comigo dia desses, o jeito foi tentar ir lá na esquina para ver se encontrava alguma que se ajustasse ao que precisava.
          Na esquina sempre tem alguém com opinião, é uma lei quase que universal isso. Antigamente era nos cantos que ficavam as opiniões, lembra? Aquela professora centenária que já olhava por cima dos óculos com ar de toda a sabedoria dos campos de batalha e declarava: Pegue a sua opinião e vá lá para o canto pensar no que está fazendo. E acrescentava implacável: E de costas para os outros que ninguém está interessado na sua opinião.
          Tempo bom, aquele. Hoje não se faz mais isso, dizem que traumatiza, que bobagem. A verdade é que agora as opiniões vêm de longe. Da China ou da Índia, onde se fabricam opiniões aos montes para distribuir para o resto do mundo por um preço bem abaixo do que as que são produzidas “in Loco”.
          Opinião viajada, para todos os tipos e gostos. Dizem que por lá não fica quase nenhuma, mandam todas para fora, para manter o controle, de qualidade. Enfim, o importante é que sempre que se precisa de opinião, pode-se recorrer à esquina que lá tem. Eu precisava muito de uma.
          Cheguei lá o cara já foi logo tentando me empurrar uma opinião pronta, como se eu fosse algum otário que aceita as coisas assim facilmente. Comigo não! Vou logo apontando o problema. “Essa roupa vermelha? Que é isso? Está tirando uma com a minha cara? ”.  Logo fica todo condescendente, percebe que sou dos que tem cacife para coisa mais alta. “Desculpe, Senhor. Prefere azul? Não? Já sei, o senhor tem jeito de quem gosta de um verde com alguns detalhes em amarelo. Acertei? Pois é, está muito na moda agora. O senhor tem bom gosto. Ora se tem. ”.
          Tira a roupa vermelha e pega outra verde e amarela no saco em que tinha todo tipo de cores. Quem seria a coisa que pegaria aquele rosa choque com purpurina? Algum artista? Droga, quase deixo escapar o detalhe. “Essa esquerda está com defeito. Não vou querer levar isso não”. “Nossa, não é mesmo? O senhor tem bom olho, percebeu logo de cara. Espera que vou trocar. Prefere duas direitas? Não? É, acho melhor não, acabam brigando entre si. Espere que vou dar um jeito. Já sei o que o senhor precisa, um minutinho. ”. Reforma daqui e reforma dali até que a opinião ganha ares mais equilibrados. Fica melhor assim. Qualquer coisa a roupa disfarça alguma imperfeição que possa ter escapado por baixo dos panos.
          Olho o relógio preocupado, o tempo passa e nada da opinião estar pronta. Daqui a pouco nem adianta mais. Dou uma olhada no trabalho que ele está fazendo e vejo que já tem alguma articulação. Isso é bom, todos gostam de uma opinião bem articulada. Dá para você levar ela para um lado ou para o outro, de acordo com o momento, fazer parecer diferente só mexendo um pouquinho.
          Ele dá uma escovada bem forte para tirar uma poeira imaginária, passa um produto nas superfícies expostas para dar uma lustrada e o conjunto todo fica maravilhoso, aspecto novo. Estou impressionado com a habilidade, vou recomendar para os amigos quando precisarem de opiniões. Guardo um anuncio na manga sem que ele perceba. É importante ter sempre um cartão na manga quando se lida com fabricantes de opinião.
          Já ia embalar para me dar, mas peço que espere. Vou conferir melhor. Há coisas que só se veem quando estão na nossa mão. Dito e feito, logo percebi o engodo. “O que é isso meu amigo? Está vendo aqui? Made in China! Está de brincadeira comigo? Estou pagando caro pela opinião e o senhor me vem com um produto de segunda? ”.
          Peguei-o de jeito. Comigo é assim, não dou mole com as opiniões. Se é para ter uma, que seja o melhor que se pode ter. Percebe que não vou aceitar ser enganado, nem tenta. Emputecido pega a opinião e arranca o selo deixando de lado, vai acabar passando para algum outro trouxa, tenho certeza. De baixo do balcão pega uma caixa fechada à chave. Abre e tira de lá outro selo, sem deixar ver o que mais tinha, uma arma creio eu, não me intimido. Me mostra antes de aplicar para que veja: Made in USA. Agora sim. Aplica o selo de qualidade na opinião e finalmente embrulha.
          Coloca na sacola uns confetes, de brinde pelo constrangimento. Pega o dinheiro que desaparece rapidinho. Quando vê que estou satisfeito com a minha opinião elogia: “O senhor é um grande formador de opinião! ”. Dou risada e confirmo, já está fazendo efeito. Não há nada melhor do que ser reconhecido pelo que se tem.
Opinião é tudo, hoje em dia!


Danny Marks

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Outro lado do Espelho


          Como planejar uma carreira de sucesso? Essa é a pergunta do milhão. Não, ela não vai tornar rico quem responder corretamente, existem muitos outros fatores envolvidos para que isso ocorra (e iremos falar sobre alguns daqui a pouco), mas é a pergunta que praticamente todo mundo faz ao menos uma vez na vida.
          A resposta normalmente envolve uma palavra chamada “planejamento”. E parece que as coisas ficam mais simples. Não ficam. Afinal o que seria um “planejamento”? Em termos gerais é tudo aquilo que você precisa fazer para alcançar o sucesso em alguma coisa que deseja conquistar. Percebe como não é tão simples?
          Começa com o famoso “conhece a ti mesmo”. Como fazer isso se estamos em constante evolução? Pior, se temos que nos transformar em algo maior para alcançar aquilo que desejamos (do contrário bastaria ir lá e pegar o que precisamos)? Temos que atravessar para o outro lado do espelho.
          Uma carreira é um percurso, não um fim. Isso tem que ficar claro para que se possa entender todas as implicações. Quando falamos em percurso, estamos estabelecendo que partimos de um ponto e nos encaminhamos para um lugar que sabemos existir e que nos interessa. Isso obriga que sejam cumpridas etapas que nos aproximam do objetivo, nos permitem reavaliar o trajeto e até podem nos proporcionar recursos que vão ser necessários para superar as próximas etapas.
          E se, em algum momento, resolvermos mudar o objetivo? Na maioria das vezes é justamente isso que acontece. Só quando percorremos uma determinada distância no percurso da nossa carreira é que podemos entender melhor sobre ela, mas todo o trabalho que foi feito anteriormente, acumulando recursos para se vencer as etapas, não está perdido. Em primeiro lugar foi justamente isso que lhe permitiu rever as metas e o transformou em alguém que deseja ter outra carreira.
          Quando não se tem muitos recursos para investir em uma carreira, a necessidade de acertar imediatamente é mais forte. Por isso que é preciso planejar de forma melhor antes de começar a jornada. Pense em manter o objetivo final como uma orientação geral. É naquela direção que deseja ir, mas não necessariamente naquele ponto.
          O segundo passo é criar uma base geral que lhe sirva ainda que o destino se altere. Como assim? Não importa qual a profissão que vai exercer, vai precisar se comunicar muito bem, portanto um investimento nesse sentido é sempre vantajoso. Dominar razoavelmente um idioma lhe permite se comunicar melhor nele, se conseguir acrescer mais idiomas, maiores as chances de comunicação e de sucesso, afinal, de que adianta ser muito bom se ninguém sabe disso?
          Pesquisar sobre a carreira que lhe agrada permite avaliar antecipadamente as compatibilidades. Não pense nos lucros que irá adquirir se a carreira que pretende for muito específica e/ou necessitar de uma longa preparação na aquisição de conhecimentos. Se os recursos são escassos, tente um meio termo, algo que gere uma fonte de renda e ainda lhe permita seguir no caminho desejado.
          Conhecimentos são muito importantes, quanto mais teorias acumular no seu desenvolvimento, mais facilmente vai poder usar os seus conhecimentos para fazer a diferença, mas, como diz o ditado popular “a teoria, na prática, é outra”. Ou seja, precisa mediar a teoria com a prática para desenvolver suas habilidades e compatibilidades, e usar isso como um verificador também para decidir se é realmente o que gosta. Muitas vezes a teoria nos mostra algo pelo qual nos apaixonamos e na prática é um inferno completamente diferente.
          Tem-se que ficar preocupados também em não aprofundar demais um conhecimento de forma que seja soterrado por ele. Lembre-se que um percurso exige saber onde está pisando, mas também mobilidade, cuidado com as armadilhas que parecem facilitadores e se tornam complicadores. Se o que deseja e acredita ser capaz não é o que faz, faça de forma que uma coisa não anule a outra.
          Por fim, para não ir muito fundo, lembre-se que todo bom planejamento implica em saber o que fazer se tudo der errado, como conseguir sobreviver a isso e ainda ter forças para continuar tentando. E se tudo deu errado e está em nova tentativa, pense que precisa começar o planejamento novamente, incluindo o plano B.
          Acima de tudo saiba que a vida não é justa. Oportunidades aparecem quando não estamos prontos; pessoas menos preparadas conseguem se dar bem enquanto você não; não importa onde chegou, vai ter que continuar fazendo mais para se manter no mesmo lugar. Aceite isso com naturalidade, se todos e todas as coisas fossem iguais, você seria apenas mais um e não faria diferença nenhuma.
          Acredite em você, mas questione-se sempre. Só isso vai garantir que do outro lado do espelho vai conseguir alcançar um entendimento mais profundo de si mesmo, e não uma parede sólida e escura.


Danny Marks

A respeito da loucura de Ser


          Uma taça de vinho à beira mar. Um prazer superado, talvez, se for em algum restaurante no alto de uma montanha na Grécia, com toda a paisagem aos seus pés. Mas como não há espaço nos meus rendimentos para um restaurante, quanto mais ir à Grécia de Shirley Valentine, então dou-me loucura de um cabernet sauvignon, comprado no atacadista mais próximo com o brinde de duas taças inclusas na embalagem.
          Uma bermuda jeans, chinelos de dedo, um livro e raios de sol completam o traje de gala nesse momento de mergulho. O Adágio pour violon prepara para a batida surda de Today is a good day to die, o coração pulsante antes da batalha campal estimulado apenas pelo solo da guitarra a cortar as ilusões e incitar uma última prece ou praga ao demônio.
          Ela senta ao meu lado com um vestido leve, sem pedir licença, o vento a soprar grãos de areia em seus cabelos. Óculos grandes e sombrios nublam o olhar mais que a sombra da pala de meu chapéu sintético, estilo de Boston abrasileirado na china para uma cor branca com tarja preta a lhe envolver o copo.
          O vinho em minhas mãos atrai um olhar que, despido do invólucro a desfocar o sol, me fita do silêncio. Há músicas que falam diretamente com a alma, não precisam ser conscientizadas, apenas agem sem reflexão alguma na perfeita harmonia de existir sem entraves, e a mão entrega a outra mão a taça resgatada da embalagem e a enche de sangue espremido da uva e fermentado delicadamente.
          O fone arrancado do aparelho paralisa momentaneamente a execução tensa, até que dedos a tornem tonitruante no abafar que o som do mar, ao longe, lhe traz, criando uma bolha minúscula de tempo fora da realidade, de onde se olha o mundo como que protegido por uma barreira insuperável de solidão transparente, líquida e a dois.
          Spring Waltz fere com Chopin qualquer argumento que se possa ter contra a insanidade do quadro que se compõe em retalhos discrepantes e bebe-se a vida em pequenos goles revolucionários.
          Há sal nas aguas fora do mar que necessitam ser ignorados em respeito, deixando que a brisa refresque o momento da maré que transborda por sobre as rochas duras, arrancando-lhes aos poucos as areias de praias.
          Você não precisa ser linda para me deixar excitado, declara Tom Jones. Ela recua para uma zona de conforto, mas seus pés correm ao som do trompete. Ondas avançam e recuam na dança infinita das marés, criando sua própria música. Um gole a mais, a vida tem pressa, sempre querendo que avance. Corra, deixa isso aí, vai fazer a sua felicidade naquele instante que não pode ser perdido. Construa uma ponte sobre as águas revoltas, não se sinta insignificante, deixe o cansaço de lado, há amigos onde precisar deles, continue vivendo.
          Costas das mãos contém as aguas salgadas, encostas onde se pode aliviar de um peso, apenas deixando ir no avesso do tapa. Uma gota cai e se espalha como uma flor que brota no peito. É tão surreal a situação que nem causa espanto, apenas nova perspectiva. Cicatrizes de vinho podem nos lembrar de momentos agradáveis, talvez nunca mais desapareça e possa ser revivido em algum momento de incerteza. E o que era dor se torna reflexão, há sempre uma transformação ocorrendo sem que nossa vontade esteja envolvida, e ainda assim... Ainda assim.
          Só um Robocop Gay para salvar o momento que ameaça deixar o nonsense e se encaminhar assustadoramente para algo sólido que se desmanche no ar que respiramos. O riso cristalino ressoa na taça já vazia de sangue e aproximo delicadamente um gargalo para voltar a enche-la, mas a mão cobre a taça e, depois, a minha mão. Suave agradecimento de almas que esqueceram palavras em algum lugar, onde gente cobra atitudes, ações. O momento é apenas de deixar ser.
          Impossível havia escapado pelo mundo em busca de si mesma e quando o choro aliviou sua alma, pode rir novamente. Seus dentes a devorar e mastigar o mundo, digerindo com satisfação o que poderia muda-la, mas jamais iria substitui-la. Levantou-se e piscou um beijo antes de partir em óculos escuros para não ofuscar o sol.
          O aparelho avisou: I’m yours! Não pude deixar de rir. Recolhi as taças, tampei meia garrafa, recoloquei os fones e voltei para ao refúgio em dó menor. Engole essa, Grécia. Quem precisa de montanhas quando se pode atingir o topo do mundo para devolver anjos às estrelas, com apenas um salto.
          Acho que da próxima vez vou experimentar um Merlot ou talvez um Malbec. Devem acompanhar bem Thunderstruck e vampiros, por que não?
          — Iuuuhuuu — declara Dire Straits.
Que Twisted Sister nos proteja. We’re not gonna take it!
         

Danny Marks