Estava lendo Flor de Obsessão de Nelson Rodrigues e
assistindo a TV Senado durante o julgamento da, agora, ex-presidente do Brasil
e não pude deixar de pensar naquela fábula sobre a Nova Roupa do Rei de
Andersen.
Não estou querendo me gabar de ser multitarefa, até porque
estou bem longe disso. Com a idade a paciência parece diminuir, ao menos para
determinadas coisas, e fica-se “zapeando” entre as que não se pode apenas
deixar para lá.
A questão é que a crônica de Nelson Rodrigues faz uma
crítica à sociedade através de uma crítica recebida de uma leitora sobre a
nudez declamada pelo autor. Claro que não sou tão genial quanto o mestre literato,
mas a literatura nos permite fazer um recorte que trespassa textos
completamente diferentes na forma, mas que remetem ao mesmo conteúdo, como no
caso do conto de fadas A Nova Roupa do Rei, de Andersen.
Enquanto não foi denunciada a farsa da roupa invisível e
revelada a nudez do Rei, não causou nenhum incômodo na sociedade, o mesmo que
descreve Nelson sobre o umbigo da embaixatriz, ou o nu carnavalesco da avenida,
exposto para o mundo inteiro com detalhes e playback a que sugere.
A nudez só causa incômodo quando algum garoto grita que há nudez
no rei, já vista por todos, e muda completamente o estado da coisa. E o Rei
que, até então, estava em êxtase pelo seu novo e invisível traje, passa a
sentir a vergonha póstuma do nu repudiado pela cidade porque deslocado em sua
exibição não solicitada; termina o logro, e a verdade traz o nu arrependimento.
A mesma moça que desfila seminua para as câmeras que
levarão sua nudez ao mundo, não suporta ver-se da mesma forma depois que sai da
avenida, e só a retoma de forma natural ao pisar nas areias banhadas de mar.
Vestimo-nos subjetivamente, mais que objetivamente, pelos olhos alheios que nos
servem de espelho.
E o que isso tem a ver com a situação política brasileira? Já
o sabe, mas espera que lhe diga a minha pessoal interpretação para poder compor
o seu aplauso ou a sua crítica à minha opinião despida e despudorada.
Deixo a crítica, aponto os fatos. O que se viu no senado
durante o longo julgamento do Impeachment da, agora, ex-presidente não foi
outra coisa que não a vergonha póstuma ao ter expostos os valores morais (sejam
de que quantidade ou câmbio forem) e ao se sentirem in-vestidos e vigiados,
reclamam pela nudez do umbigo, exposto inadvertidamente, escandalizando-se ou
defendendo acirradamente a controvérsia da liberdade total do despir-se. E do
atrito surge cortina de fumaça que não permite que se veja nada do que devia
ser exposto.
Surge então o Rei com sua nova roupa, temeroso por não
saber se está desnudo ou em invisível armadura, evitando qualquer exposição aos
olhares espelho, que não seja a controlada cegueira da ética protocolar.
A lição que nos vem da literatura é de que não há problema
na nudez enquanto nudez, que se mostra como natural do que não precisa temer
ser mostrado, já que é real e verdadeiro. O problema está quando essa nudez é julgada
pelo olhar alheio que lhe oferece valor qualquer e lhe cobra em maior monta um
sentido, uma decência, um contexto que desloca de sua existência natural e lança
na cela social o recorte da cena.
Não é a nudez que é exposta no rei, mas a vergonha da
arrogância e incompetência refletida no olhar espelho que ofende. Fosse a nudez
sustentada pela própria natureza de ser e apoiada pelo consenso legal ao qual
estivesse submetida, não haveria qualquer necessidade de vergonha do julgamento
alheio e desfilaria pela avenida simplesmente ignorando a falta ou o excesso de
visão.
É quando se está ciente da intransigência, do erro
cometido, que se torna premente a necessidade de apontar a vergonha póstuma da
própria nudez, para outro lado, denunciando em altos brados, no outro, aquilo
que já vimos em nós, mas que, enquanto não denunciado, podemos esconder com
tranquilidade do olhar que fere.
Triste não é estar despido pela própria natureza, mas
sentir necessidade de esconder a nudez na multidão a espera de algum olhar de
solidão, para poder cravar-lhe nas costas a navalha da vergonha que não aguenta
mais carregar, deixando que morra estendida no chão frio do asfalto, quebrando
o olhar-espelho que revela o que não deveria.
(Danny Marks)
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