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quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Roupa Velha Colorida.


          Estava lendo Flor de Obsessão de Nelson Rodrigues e assistindo a TV Senado durante o julgamento da, agora, ex-presidente do Brasil e não pude deixar de pensar naquela fábula sobre a Nova Roupa do Rei de Andersen.
          Não estou querendo me gabar de ser multitarefa, até porque estou bem longe disso. Com a idade a paciência parece diminuir, ao menos para determinadas coisas, e fica-se “zapeando” entre as que não se pode apenas deixar para lá.
          A questão é que a crônica de Nelson Rodrigues faz uma crítica à sociedade através de uma crítica recebida de uma leitora sobre a nudez declamada pelo autor. Claro que não sou tão genial quanto o mestre literato, mas a literatura nos permite fazer um recorte que trespassa textos completamente diferentes na forma, mas que remetem ao mesmo conteúdo, como no caso do conto de fadas A Nova Roupa do Rei, de Andersen.
          Enquanto não foi denunciada a farsa da roupa invisível e revelada a nudez do Rei, não causou nenhum incômodo na sociedade, o mesmo que descreve Nelson sobre o umbigo da embaixatriz, ou o nu carnavalesco da avenida, exposto para o mundo inteiro com detalhes e playback a que sugere.
          A nudez só causa incômodo quando algum garoto grita que há nudez no rei, já vista por todos, e muda completamente o estado da coisa. E o Rei que, até então, estava em êxtase pelo seu novo e invisível traje, passa a sentir a vergonha póstuma do nu repudiado pela cidade porque deslocado em sua exibição não solicitada; termina o logro, e a verdade traz o nu arrependimento.
          A mesma moça que desfila seminua para as câmeras que levarão sua nudez ao mundo, não suporta ver-se da mesma forma depois que sai da avenida, e só a retoma de forma natural ao pisar nas areias banhadas de mar. Vestimo-nos subjetivamente, mais que objetivamente, pelos olhos alheios que nos servem de espelho.
          E o que isso tem a ver com a situação política brasileira? Já o sabe, mas espera que lhe diga a minha pessoal interpretação para poder compor o seu aplauso ou a sua crítica à minha opinião despida e despudorada.
          Deixo a crítica, aponto os fatos. O que se viu no senado durante o longo julgamento do Impeachment da, agora, ex-presidente não foi outra coisa que não a vergonha póstuma ao ter expostos os valores morais (sejam de que quantidade ou câmbio forem) e ao se sentirem in-vestidos e vigiados, reclamam pela nudez do umbigo, exposto inadvertidamente, escandalizando-se ou defendendo acirradamente a controvérsia da liberdade total do despir-se. E do atrito surge cortina de fumaça que não permite que se veja nada do que devia ser exposto.
          Surge então o Rei com sua nova roupa, temeroso por não saber se está desnudo ou em invisível armadura, evitando qualquer exposição aos olhares espelho, que não seja a controlada cegueira da ética protocolar.
          A lição que nos vem da literatura é de que não há problema na nudez enquanto nudez, que se mostra como natural do que não precisa temer ser mostrado, já que é real e verdadeiro. O problema está quando essa nudez é julgada pelo olhar alheio que lhe oferece valor qualquer e lhe cobra em maior monta um sentido, uma decência, um contexto que desloca de sua existência natural e lança na cela social o recorte da cena.
          Não é a nudez que é exposta no rei, mas a vergonha da arrogância e incompetência refletida no olhar espelho que ofende. Fosse a nudez sustentada pela própria natureza de ser e apoiada pelo consenso legal ao qual estivesse submetida, não haveria qualquer necessidade de vergonha do julgamento alheio e desfilaria pela avenida simplesmente ignorando a falta ou o excesso de visão.
          É quando se está ciente da intransigência, do erro cometido, que se torna premente a necessidade de apontar a vergonha póstuma da própria nudez, para outro lado, denunciando em altos brados, no outro, aquilo que já vimos em nós, mas que, enquanto não denunciado, podemos esconder com tranquilidade do olhar que fere.
          Triste não é estar despido pela própria natureza, mas sentir necessidade de esconder a nudez na multidão a espera de algum olhar de solidão, para poder cravar-lhe nas costas a navalha da vergonha que não aguenta mais carregar, deixando que morra estendida no chão frio do asfalto, quebrando o olhar-espelho que revela o que não deveria.


(Danny Marks)

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