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sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Vira-lata de Pedigree


          Uma vantagem de se ficar um velho escritor, e ainda bem que há algumas nisso, é que já se viu tanta coisa tantas vezes que elas começam a fazer algum sentido. É quase como virar um historiador, antropólogo, um sábio investigador das culturas passadas, um Joseph Campbell amador.
          Não quero falar da Jornada do Herói, talvez o monomito mais conhecido da história da humanidade. Ok, tem aquele outro, e esse aí também, mas vamos deixar assim. Que tal falar sobre algo da modernidade, que está nas bocas e nas docas? Quem já ouviu falar dos efeitos benéficos da crise?
          É exatamente isso o que quis dizer: Os efeitos benéficos da crise. Quantos livros foram criados, quantas reportagens foram feitas, quantos “cases” de sucesso foram estudados e divulgados por grandes figuras carismáticas? Basta ter uma crise econômica e a palavra de ordem passa a ser: reinvente-se!
          Aqui no Brasil é sempre a mesma coisa. Assim que a crise começa, culpa-se o governo pela crise, começa-se a falar em fugir do país para outro lugar melhor que fica em qualquer lugar que não aqui, pipocam os depoimentos de pessoas que largaram tudo (uma boa carreira de sucesso, uma vida confortável, carro de luxo, etc.) e se lançaram em alguma aventura em busca da verdadeira felicidade.
          Nesse ponto a crise avança e fica mais difícil para todo mundo, é o momento de dizer que a culpa é do povo que não sabe fazer as coisas direito, que se vende por qualquer circo que se apresentar, que o melhor é que morresse uma boa parte dos bandidos (que são todos os outros que não concordam com quem fala) que só sugam nas tetas da sociedade, cresce o fanatismo, a revolta, o radicalismo, as manifestações violentas.
          E a crise avança mais um pouco, e chega o momento de promover a reinvenção, de revelar as pessoas que conseguiram através do próprio esforço driblar a crise e até crescer nos negócios. Empreendedorismo, o futuro está nas suas mãos. O sucesso só depende da sua capacidade de correr riscos e se aventurar em alguma coisa que vai dar certo, se você se empenhar com a alma e todas as economias, suas e de parentes e amigos que conseguir aliciar.
          É quando o monstro vira seu amigo, o governo começa a tentar ajudar a reaquecer a economia, o povo é a melhor coisa que este pais tem, somos todos guerreiros, não desistimos nunca, os sacrifícios são necessários para garantir a vitória que está garantida para quem chegar lá no final do túnel. As oportunidades aguardam depois da curva.
          E as coisas finalmente melhoram, conseguimos virar a própria lata e subir ao pódio mais alto do pedigree. Somos todos campeões, os que sobreviveram. Ninguém fala nos mortos, feridos e falidos; os inocentes que sempre acabam tombando nas guerras para melhorar as coisas, para voltar a ordem, e se não estamos entre eles, é porque deu certo, ou porque não somos inocentes.
          Mas ao contrário do que julgam os brasileiros, isso não é atual ou acontece apenas aqui. Basta olhar para a literatura sobre o assunto de forma mais isenta, sem óculos cor de rosa, ou cinza. Quem já conheceu Dilbert e seus pares, sabe que o discurso é o mesmo, seja na Ásia, seja na Europa, seja nas Américas. Não adianta perguntar quem mexeu no seu queijo, nem conhecer profundamente o seu inimigo.
          O momento é para um tipo específico de literatura. Recomendo como referência Joseph Campbell, com seu monomito do Herói, que é apenas uma representação figurativa do ritual eterno da passagem da vida infantil para a adulta: a adolescência.
          A adolescência é uma invenção moderna para uma fase da vida em que se enfrenta a crise (outra invenção moderna) e se tem que provar que está apto a viver uma vida adulta (ou morre-se no processo, sendo um pária para sempre). Qual a novidade?
          A sociedade em que se vive, seja em que país for, também tem as suas fases de adolescências, fabricadas ou não, de forma a se fechar ciclos e... começar tudo de novo. Cada geração vai ter que enfrentar ao menos uma crise global, cada geração vai ter que suportar os seus mortos e monstros, cada geração vai ter que se “reinventar” para permanecer no modelo definido.
          Alguns criam as “contraculturas” que rapidamente são absorvidas depois da “farra” e o sonho acaba. O largar tudo só funciona quando se acumulou reservas suficientes para se manter vivo em outro lugar até que as coisas se acomodem e se consiga uma nova forma de voltar ao velho esquema, na maioria das vezes ao custo da geração seguinte.
          O que fazer então? A resposta seria meio óbvia, precisamos atingir a maturidade como sociedade, incorporar a pluralidade racial ao nosso pedigree e assumir que somos sim, vira-latas e isso só nos torna mais resistentes, mais eficientes, mais rápidos e capazes de nos adaptar, abandonando completamente o ideal de pureza que só o herói pode ter, e que, na verdade, poucos alcançam.
          Isso seria dizer que podemos abandonar completamente toda a mítica da jornada do herói e começar a construir um novo monomito que vai sustentar e orientar o futuro da humanidade, mas existe uma forte resistência Luddista a isso, para equilibrar a balança e tornar a crise (e o ciclo) necessária. Até que o monstro ganhe no final.


Danny Marks

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