Uma vantagem de se ficar um velho escritor, e ainda bem que
há algumas nisso, é que já se viu tanta coisa tantas vezes que elas começam a
fazer algum sentido. É quase como virar um historiador, antropólogo, um sábio
investigador das culturas passadas, um Joseph Campbell amador.
Não quero falar da Jornada do Herói, talvez o monomito mais
conhecido da história da humanidade. Ok, tem aquele outro, e esse aí também,
mas vamos deixar assim. Que tal falar sobre algo da modernidade, que está nas
bocas e nas docas? Quem já ouviu falar dos efeitos benéficos da crise?
É exatamente isso o que quis dizer: Os efeitos benéficos da
crise. Quantos livros foram criados, quantas reportagens foram feitas, quantos
“cases” de sucesso foram estudados e divulgados por grandes figuras
carismáticas? Basta ter uma crise econômica e a palavra de ordem passa a ser:
reinvente-se!
Aqui no Brasil é sempre a mesma coisa. Assim que a crise
começa, culpa-se o governo pela crise, começa-se a falar em fugir do país para
outro lugar melhor que fica em qualquer lugar que não aqui, pipocam os
depoimentos de pessoas que largaram tudo (uma boa carreira de sucesso, uma vida
confortável, carro de luxo, etc.) e se lançaram em alguma aventura em busca da
verdadeira felicidade.
Nesse ponto a crise avança e fica mais difícil para todo
mundo, é o momento de dizer que a culpa é do povo que não sabe fazer as coisas
direito, que se vende por qualquer circo que se apresentar, que o melhor é que
morresse uma boa parte dos bandidos (que são todos os outros que não concordam
com quem fala) que só sugam nas tetas da sociedade, cresce o fanatismo, a
revolta, o radicalismo, as manifestações violentas.
E a crise avança mais um pouco, e chega o momento de
promover a reinvenção, de revelar as pessoas que conseguiram através do próprio
esforço driblar a crise e até crescer nos negócios. Empreendedorismo, o futuro
está nas suas mãos. O sucesso só depende da sua capacidade de correr riscos e
se aventurar em alguma coisa que vai dar certo, se você se empenhar com a alma
e todas as economias, suas e de parentes e amigos que conseguir aliciar.
É quando o monstro vira seu amigo, o governo começa a
tentar ajudar a reaquecer a economia, o povo é a melhor coisa que este pais
tem, somos todos guerreiros, não desistimos nunca, os sacrifícios são
necessários para garantir a vitória que está garantida para quem chegar lá no
final do túnel. As oportunidades aguardam depois da curva.
E as coisas finalmente melhoram, conseguimos virar a
própria lata e subir ao pódio mais alto do pedigree. Somos todos campeões, os
que sobreviveram. Ninguém fala nos mortos, feridos e falidos; os inocentes que
sempre acabam tombando nas guerras para melhorar as coisas, para voltar a
ordem, e se não estamos entre eles, é porque deu certo, ou porque não somos
inocentes.
Mas ao contrário do que julgam os brasileiros, isso não é
atual ou acontece apenas aqui. Basta olhar para a literatura sobre o assunto de
forma mais isenta, sem óculos cor de rosa, ou cinza. Quem já conheceu Dilbert e
seus pares, sabe que o discurso é o mesmo, seja na Ásia, seja na Europa, seja
nas Américas. Não adianta perguntar quem mexeu no seu queijo, nem conhecer
profundamente o seu inimigo.
O momento é para um tipo específico de literatura. Recomendo
como referência Joseph Campbell, com seu monomito do Herói, que é apenas uma
representação figurativa do ritual eterno da passagem da vida infantil para a
adulta: a adolescência.
A adolescência é uma invenção moderna para uma fase da vida
em que se enfrenta a crise (outra invenção moderna) e se tem que provar que
está apto a viver uma vida adulta (ou morre-se no processo, sendo um pária para
sempre). Qual a novidade?
A sociedade em que se vive, seja em que país for, também
tem as suas fases de adolescências, fabricadas ou não, de forma a se fechar
ciclos e... começar tudo de novo. Cada geração vai ter que enfrentar ao menos
uma crise global, cada geração vai ter que suportar os seus mortos e monstros,
cada geração vai ter que se “reinventar” para permanecer no modelo definido.
Alguns criam as “contraculturas” que rapidamente são
absorvidas depois da “farra” e o sonho acaba. O largar tudo só funciona quando
se acumulou reservas suficientes para se manter vivo em outro lugar até que as
coisas se acomodem e se consiga uma nova forma de voltar ao velho esquema, na
maioria das vezes ao custo da geração seguinte.
O que fazer então? A resposta seria meio óbvia, precisamos
atingir a maturidade como sociedade, incorporar a pluralidade racial ao nosso
pedigree e assumir que somos sim, vira-latas e isso só nos torna mais
resistentes, mais eficientes, mais rápidos e capazes de nos adaptar,
abandonando completamente o ideal de pureza que só o herói pode ter, e que, na
verdade, poucos alcançam.
Isso seria dizer que podemos abandonar completamente toda a
mítica da jornada do herói e começar a construir um novo monomito que vai
sustentar e orientar o futuro da humanidade, mas existe uma forte resistência
Luddista a isso, para equilibrar a balança e tornar a crise (e o ciclo)
necessária. Até que o monstro ganhe no final.
Danny Marks
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