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terça-feira, 6 de setembro de 2016

A respeito da loucura de Ser


          Uma taça de vinho à beira mar. Um prazer superado, talvez, se for em algum restaurante no alto de uma montanha na Grécia, com toda a paisagem aos seus pés. Mas como não há espaço nos meus rendimentos para um restaurante, quanto mais ir à Grécia de Shirley Valentine, então dou-me loucura de um cabernet sauvignon, comprado no atacadista mais próximo com o brinde de duas taças inclusas na embalagem.
          Uma bermuda jeans, chinelos de dedo, um livro e raios de sol completam o traje de gala nesse momento de mergulho. O Adágio pour violon prepara para a batida surda de Today is a good day to die, o coração pulsante antes da batalha campal estimulado apenas pelo solo da guitarra a cortar as ilusões e incitar uma última prece ou praga ao demônio.
          Ela senta ao meu lado com um vestido leve, sem pedir licença, o vento a soprar grãos de areia em seus cabelos. Óculos grandes e sombrios nublam o olhar mais que a sombra da pala de meu chapéu sintético, estilo de Boston abrasileirado na china para uma cor branca com tarja preta a lhe envolver o copo.
          O vinho em minhas mãos atrai um olhar que, despido do invólucro a desfocar o sol, me fita do silêncio. Há músicas que falam diretamente com a alma, não precisam ser conscientizadas, apenas agem sem reflexão alguma na perfeita harmonia de existir sem entraves, e a mão entrega a outra mão a taça resgatada da embalagem e a enche de sangue espremido da uva e fermentado delicadamente.
          O fone arrancado do aparelho paralisa momentaneamente a execução tensa, até que dedos a tornem tonitruante no abafar que o som do mar, ao longe, lhe traz, criando uma bolha minúscula de tempo fora da realidade, de onde se olha o mundo como que protegido por uma barreira insuperável de solidão transparente, líquida e a dois.
          Spring Waltz fere com Chopin qualquer argumento que se possa ter contra a insanidade do quadro que se compõe em retalhos discrepantes e bebe-se a vida em pequenos goles revolucionários.
          Há sal nas aguas fora do mar que necessitam ser ignorados em respeito, deixando que a brisa refresque o momento da maré que transborda por sobre as rochas duras, arrancando-lhes aos poucos as areias de praias.
          Você não precisa ser linda para me deixar excitado, declara Tom Jones. Ela recua para uma zona de conforto, mas seus pés correm ao som do trompete. Ondas avançam e recuam na dança infinita das marés, criando sua própria música. Um gole a mais, a vida tem pressa, sempre querendo que avance. Corra, deixa isso aí, vai fazer a sua felicidade naquele instante que não pode ser perdido. Construa uma ponte sobre as águas revoltas, não se sinta insignificante, deixe o cansaço de lado, há amigos onde precisar deles, continue vivendo.
          Costas das mãos contém as aguas salgadas, encostas onde se pode aliviar de um peso, apenas deixando ir no avesso do tapa. Uma gota cai e se espalha como uma flor que brota no peito. É tão surreal a situação que nem causa espanto, apenas nova perspectiva. Cicatrizes de vinho podem nos lembrar de momentos agradáveis, talvez nunca mais desapareça e possa ser revivido em algum momento de incerteza. E o que era dor se torna reflexão, há sempre uma transformação ocorrendo sem que nossa vontade esteja envolvida, e ainda assim... Ainda assim.
          Só um Robocop Gay para salvar o momento que ameaça deixar o nonsense e se encaminhar assustadoramente para algo sólido que se desmanche no ar que respiramos. O riso cristalino ressoa na taça já vazia de sangue e aproximo delicadamente um gargalo para voltar a enche-la, mas a mão cobre a taça e, depois, a minha mão. Suave agradecimento de almas que esqueceram palavras em algum lugar, onde gente cobra atitudes, ações. O momento é apenas de deixar ser.
          Impossível havia escapado pelo mundo em busca de si mesma e quando o choro aliviou sua alma, pode rir novamente. Seus dentes a devorar e mastigar o mundo, digerindo com satisfação o que poderia muda-la, mas jamais iria substitui-la. Levantou-se e piscou um beijo antes de partir em óculos escuros para não ofuscar o sol.
          O aparelho avisou: I’m yours! Não pude deixar de rir. Recolhi as taças, tampei meia garrafa, recoloquei os fones e voltei para ao refúgio em dó menor. Engole essa, Grécia. Quem precisa de montanhas quando se pode atingir o topo do mundo para devolver anjos às estrelas, com apenas um salto.
          Acho que da próxima vez vou experimentar um Merlot ou talvez um Malbec. Devem acompanhar bem Thunderstruck e vampiros, por que não?
          — Iuuuhuuu — declara Dire Straits.
Que Twisted Sister nos proteja. We’re not gonna take it!
         

Danny Marks

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