Uma taça de vinho à beira mar. Um prazer superado, talvez,
se for em algum restaurante no alto de uma montanha na Grécia, com toda a
paisagem aos seus pés. Mas como não há espaço nos meus rendimentos para um
restaurante, quanto mais ir à Grécia de Shirley Valentine, então dou-me loucura
de um cabernet sauvignon, comprado no atacadista mais próximo com o brinde de duas
taças inclusas na embalagem.
Uma bermuda jeans, chinelos de dedo, um livro e raios de
sol completam o traje de gala nesse momento de mergulho. O Adágio pour violon prepara
para a batida surda de Today is a good day to die, o coração pulsante antes da
batalha campal estimulado apenas pelo solo da guitarra a cortar as ilusões e
incitar uma última prece ou praga ao demônio.
Ela senta ao meu lado com um vestido leve, sem pedir
licença, o vento a soprar grãos de areia em seus cabelos. Óculos grandes e
sombrios nublam o olhar mais que a sombra da pala de meu chapéu sintético,
estilo de Boston abrasileirado na china para uma cor branca com tarja preta a
lhe envolver o copo.
O vinho em minhas mãos atrai um olhar que, despido do
invólucro a desfocar o sol, me fita do silêncio. Há músicas que falam
diretamente com a alma, não precisam ser conscientizadas, apenas agem sem
reflexão alguma na perfeita harmonia de existir sem entraves, e a mão entrega a
outra mão a taça resgatada da embalagem e a enche de sangue espremido da uva e
fermentado delicadamente.
O fone arrancado do aparelho paralisa momentaneamente a
execução tensa, até que dedos a tornem tonitruante no abafar que o som do mar,
ao longe, lhe traz, criando uma bolha minúscula de tempo fora da realidade, de
onde se olha o mundo como que protegido por uma barreira insuperável de solidão
transparente, líquida e a dois.
Spring Waltz fere com Chopin qualquer argumento que se
possa ter contra a insanidade do quadro que se compõe em retalhos discrepantes e
bebe-se a vida em pequenos goles revolucionários.
Há sal nas aguas fora do mar que necessitam ser ignorados
em respeito, deixando que a brisa refresque o momento da maré que transborda
por sobre as rochas duras, arrancando-lhes aos poucos as areias de praias.
Você não precisa ser linda para me deixar excitado, declara
Tom Jones. Ela recua para uma zona de conforto, mas seus pés correm ao som do
trompete. Ondas avançam e recuam na dança infinita das marés, criando sua
própria música. Um gole a mais, a vida tem pressa, sempre querendo que avance.
Corra, deixa isso aí, vai fazer a sua felicidade naquele instante que não pode
ser perdido. Construa uma ponte sobre as águas revoltas, não se sinta
insignificante, deixe o cansaço de lado, há amigos onde precisar deles,
continue vivendo.
Costas das mãos contém as aguas salgadas, encostas onde se
pode aliviar de um peso, apenas deixando ir no avesso do tapa. Uma gota cai e
se espalha como uma flor que brota no peito. É tão surreal a situação que nem
causa espanto, apenas nova perspectiva. Cicatrizes de vinho podem nos lembrar
de momentos agradáveis, talvez nunca mais desapareça e possa ser revivido em
algum momento de incerteza. E o que era dor se torna reflexão, há sempre uma
transformação ocorrendo sem que nossa vontade esteja envolvida, e ainda
assim... Ainda assim.
Só um Robocop Gay para salvar o momento que ameaça deixar o
nonsense e se encaminhar assustadoramente para algo sólido que se desmanche no
ar que respiramos. O riso cristalino ressoa na taça já vazia de sangue e
aproximo delicadamente um gargalo para voltar a enche-la, mas a mão cobre a
taça e, depois, a minha mão. Suave agradecimento de almas que esqueceram
palavras em algum lugar, onde gente cobra atitudes, ações. O momento é apenas
de deixar ser.
Impossível havia escapado pelo mundo em busca de si mesma e
quando o choro aliviou sua alma, pode rir novamente. Seus dentes a devorar e
mastigar o mundo, digerindo com satisfação o que poderia muda-la, mas jamais
iria substitui-la. Levantou-se e piscou um beijo antes de partir em óculos
escuros para não ofuscar o sol.
O aparelho avisou: I’m yours! Não pude deixar de rir.
Recolhi as taças, tampei meia garrafa, recoloquei os fones e voltei para ao
refúgio em dó menor. Engole essa, Grécia. Quem precisa de montanhas quando se
pode atingir o topo do mundo para devolver anjos às estrelas, com apenas um
salto.
Acho que da próxima vez vou experimentar um Merlot ou
talvez um Malbec. Devem acompanhar bem Thunderstruck e vampiros, por que não?
— Iuuuhuuu — declara Dire Straits.
Que
Twisted Sister nos proteja. We’re not gonna take it!
Danny Marks
Nenhum comentário:
Postar um comentário