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terça-feira, 30 de agosto de 2016

Empreendimento S/A


          Caro senhor, venho lhe falar sobre a sua empresa.
          Para melhor executar a minha função, inscrevi-me em um nível subalterno de forma que pudesse ter acesso a tudo que ocorresse nos diversos níveis.
          Foi imediata a constatação de que há um enorme vazio entre os andares mais altos e os andares abaixo deixando praticamente interrompidas qualquer via de acesso que não seja a de suprimentos (para cima) e ordens (para baixo).          Mesmo os andares abaixo desse vácuo (quase) instransponível acaba por ter diversos conflitos internos que, em uma análise mais rápida, parecem não conter uma lógica que os oriente.
          Poderia afirmar que existem agrupamentos que funcionam em um sistema mais ou menos organizado, que lutam violentamente contra outros agrupamentos em uma competição sem tréguas (mas com muitos armistícios e acordos, escondidos dos outros membros do próprio grupo) não apenas para conquistar um lugar de direito, mas para serem os únicos detentores de direito.
          Em alguns momentos esses grupos parecem mudar de lado, ou de grupo, apenas para sabotarem o grupo alheio e montarem os seus próprios grupos com filiados e simpatizantes reiniciando o processo.
          Houve, por várias vezes, tentativas bem-sucedidas de transpor o vácuo que os separa dos andares superiores, lançando para lá representantes munidos de cordões que permitiriam estabelecer um canal preliminar que neutralizaria o vácuo com a evolução dos contatos do alto com a base. Mas o que acaba ocorrendo é que, tão logo os representantes se sentem seguros, cortam os cordões com a base que os projetaram e se estabelecem em novas bases.
          Há os que se demoram a se ancorar e são puxados para o vácuo, mas são poucos. A grande maioria até consegue a façanha de inverter os cordões e, em vez de serem manipulados por eles, passam a manipular as bases através deles, ampliando a complexidade dos acordos de topo.
          Sim, mesmo no topo há conflitos muito fortes para manter os interesses próprios (não da base ou da empresa) ao ponto de ameaçar até mesmo os pilares do prédio quando as coisas passam dos limites. E quando percebem que estão sendo observados através do vácuo, parecem ficar mais furiosos, mais valentes, mais enfáticos nos seus discursos, como se tivessem sido eles que os escreveram, e não os seus colaboradores, como chamam os que estão aquém do vácuo e a uma ligação de prontidão.
          Existem, é claro, os micro acionistas que mantém a empresa funcionando com sacrifício que, apenas a eles, é exigido constantemente, seja pelos que estão lá no alto, seja pelos que esperam alcançar, também, o alto. Esses, além de contribuir com o dinheiro para manter a empresa funcionando, ainda contribuem com os produtos que produzem (e que algumas vezes até conseguem comprar para uso pessoal) e, por mais trapalhadas que as lideranças e representatividades cometam, conseguem ludibriar todos e manter as coisas dentro do esperado, ou quase.
          Há um monte de desocupados ultimamente, gente que perdeu a função por conta da turma para lá do vácuo, e que acaba sendo uma boa massa de manobra para a outra turma que está por lá e que resolveu virar a mesa, chutar o balde de champanhe e as telas de planejamento. Mas já entrou, pelo lado de cá, a equipe de contingenciamento dando ideias de como montar suas próprias equipes e... Bem, o senhor sabe, aquelas coisas de sempre.
          Talvez alguns acabem se superando ou escapando para as concorrentes, e outros retornem em algum ponto, ou posto, mas nada que não tenha sido previsto anteriormente. Isso tem funcionado bem para conter os custos de treinamento de alto nível, deixando que os interessados banquem seu aperfeiçoamento, reinserindo-os em algum ponto do processo seletivo.
          Como o senhor pode perceber, as mudanças de paradigmas objetivadas e cuidadosamente implementadas ao longo do tempo, já estão fazendo os efeitos esperados e até alguns inesperados, mas nada que realmente ameace o controle efetivo que exerce, ou sua invisibilidade.
          Anexo envio o relatório formal com todos os documentos necessários para as próximas fases de execução. As planilhas com os desvios que podem ser restituídos dos membros descartados e realocados para novos desvios e, não menos importante, uma solicitação de café de boa qualidade.
          Justifico esta última porque, além de servir, também faço uso do mesmo e não me agradou o que havia no estoque, que foi devidamente distribuído em todos os níveis para consumo.

Sem mais, despeço-me,

Auditora e moça do café
Nassua K. Ébon



(Danny Marks)

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