A coisa toda começou com uma pergunta simples em um momento
difícil. “Profissão? ” Estou credenciado como professor atualmente, mas já não
exerço mais. Fui muitas coisas antes, mas agora não. “Então o senhor é
professor...” Não, sou escritor, sempre fui, embora só tenha percebido isso com
o tempo, com a escrita e as leituras que se vai fazendo na construção do ser.
Confusa a pessoa me olha longamente, e o treinamento de
professor, enraizado já na alma, quase como um acréscimo que se faz e que se costuma
ignorar sua origem e confundir com o ser, assume o comando de fazer. Explico de
outra forma.
O que sou é algo anterior, aquilo que nasci para ser e que
ainda não consegui realizar plenamente, mas que sempre serei, independente do
que fizer. O que aprendi como profissão é outra coisa, também a de escritor,
mas realizada ultimamente, a de professor, não mais. Agora não posso dizer que
tenho a profissão de professor por não a exercer, pelo mesmo motivo que não
posso alegar ser escritor por não estar reconhecido no exercício de fazer.
Devo ter tocado um lado oculto do filósofo que, de
profissão, era outra coisa. “Então podemos dizer que o senhor é escritor, mas
está de professor? ”. Não, tenho que dizer, sentindo pena de desmontar um bom
raciocínio lógico para não ser simplista, embora não completamente errado.
Estava como professor, enquanto exercia docência, mas sempre fui escritor.
Atualmente não estou nada.
O filósofo vai embora e declara quase com pesar:
“Desempregado, então”. Também não, isso implicaria que estou tentando voltar a
trabalhar em alguma profissão, o que não é o caso. Na verdade, estou tentando
realizar um estado de ser, escritor, e conseguir um espaço profissional para
que possa ser reconhecido como profissional do fazer, a escrita.
A existência vem antes do reconhecimento. Houve época em
que os artistas eram considerados vagabundos, por se recusarem a trabalhar em
algo que não envolvesse diretamente a arte. O que não os impedia de continuar
sendo artistas, e se reconhecendo entre si, na maioria das vezes. Há vezes em
que nem mesmo um artista reconhece outro, talvez porque esteja vendo pela
natureza morta, a forma explícita que se congela em um instante, paralisando a
degradação natural e roubando-lhe a alma para lhe implantar um sentido outro.
Para existir não é preciso reconhecimento, apenas se é, faz
sentido. Mas para existir em um determinado contexto, faz-se necessário
construir um reconhecimento que o insira no modelo de reconhecimento imposto. É
preciso cumprir o nivelamento que serve de base para o profissionalismo, a
referência para o verbete do dicionário.
Quando se é uma coisa, mas existe em outra forma, pode-se
dizer que se está sendo aquilo, embora seja outra coisa. Dicotomia do século em
que vivemos, onde fica mais fácil estar do que ser, mas é preciso mais que
nunca existir no estar, e não no ser, se quiser sobreviver e continuar sendo.
Antigamente um pintor nascia pintor, e pintava. Construía
sua profissão quase sem escolas, seguindo a um ou outro mestre para aprender a
ser melhor, mas não se ensinava a ser, ou se era ou não. Não havia escolas que
ensinassem a ser, apenas a estar, e isso vem se tornando mais frequente e
necessário. O tempo tem pressa de existir, mesmo sendo o tempo. É preciso contexto
para o tempo ser tempo reconhecido, senão, é perda de tempo.
Para os escritores a
coisa foi mais difícil, foi preciso haver professores que ensinassem leitores a
serem leitores, e só então haveria escritores reconhecidos como tal, embora nem
todos escritores fossem de fato, mas na forma. Saber escrever é tão diferente
de ser escritor quanto saber ensinar é diferente de ser professor. O mesmo vale
para o cozinheiro, para o motorista, para o negociante, para o funcionário. Não
existe de fato um limite para ser, pode-se ser qualquer coisa que se deseje,
mas para ser reconhecido, aí sim, é preciso uma especialização. É preciso uma
vida inteira para estar de forma que haja um sucesso no que se faz, quanto mais
complexo for o que se faz, mas para ser é simples.
Dizem que quando se consegue ser e estar no mesmo lugar,
conquista-se a glória. Deve ser, são tão poucos que conseguem convencer os que
estão à volta de quem se é, não quem está. As pessoas não gostam de ver tão
profundamente, isso dá trabalho, exige um esforço a mais que impede de fazer
outras coisas que não são, mas são necessárias para se estar. Por isso é
preciso que o outro sempre prove que está antes de poder ser de fato o que faz.
E as vezes é preciso não ser para poder estar.
Os olhos denunciam que o filósofo se foi para não ter que
lidar com a angustia de estar sem ser, ali na frente daquele que tentava
existir. Um minuto de silêncio. As coisas podem ser constrangedoras nesses
momentos. Fosse professor tentaria explicar melhor o raciocínio na busca do
entendimento. Fosse filósofo, buscaria metáforas explicativas para o abstrato
conceito de existir em um mundo de formas que contém, mas não representam.
Pobre escritor, apenas escreve na esperança de que o leitor
reconheça e, sendo leitor, entenda. Alma gêmea do escritor, o leitor se
reconhece no outro ao reconstruir o mesmo trabalho e dar-lhe vida e significado
de existir. Conversam sem falar, justificam-se mutuamente na alegria do
reconhecimento, quando se encontram. Há momentos em que ser é extremamente
solitário e a existência pequena diante do que poderia ser, mas por não ser
reconhecido, desvanece-se como uma alma a caminho das estrelas. De volta ao
lar.
Danny Marks
"Pobre escritor, apenas escreve na esperança de que o leitor reconheça e, sendo leitor, entenda."
ResponderExcluirJustamente... Bela reflexão.
Obrigado Ana, é uma honra ter você por aqui. Seja sempre bem vinda. Abraços.
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