A minha crônica de sexta-feira causou uma certa comoção nos
leitores. Talvez por ser em um estilo poético-filosófico que acaba mexendo com
os conteúdos mais íntimos, ou por algum outro motivo que desconheço.
Não houve críticas, sou praticamente órfão nesse sentido,
apenas comentários, na maioria muito agradáveis de se ouvir. Mas ficou aquela
coisa no ar, como uma interrogação maliciosa que não incomoda a quase ninguém.
Só escritores se incomodam com interrogações. É quase uma obsessão ir buscar
respostas, tramas por trás, intencionalidades ocultas ou veladas.
Alguns dizem que ser escritor é uma patologia da qual não
se quer a cura. Ou um vício que se cultiva com cuidado, em leituras e estudos
que vão tornando ainda mais grave o estado, já agudo, até que se torne incisivo
e penetra fundo em outro mundo. De que outra forma se explicaria essa
necessidade que consome mais recursos do que se pode dar e se intensifica em
cada pequeno sucesso, sem esmorecer diante das derrotas e dificuldades?
Quem não é escritor talvez ache que o objetivo é ser
famoso, ganhar muito dinheiro e ser reconhecido na rua e adorado por todos como
um deus criador de alguma coisa impossível de existir de outra forma. A verdade
é que isso nos encanta, por certo. A quem não encantaria? Fosse um empresário
ou um motorista. Conheço motoristas que adorariam participar da Formula 1 ou
Super Truck. Todos os humanos desejam o reconhecimento, o sucesso, o dinheiro
que isso pode trazer e todo o conforto que imaginam obter quando houver
dinheiro suficiente. Alguns se perdem nesse caminho, outros se acham.
Não posso dizer como é ser escritor para outras pessoas,
mas já pensei muito a respeito do que é ser escritor para mim e digo que não
consigo ser outra coisa. Quero dizer, já fui várias coisas, é preciso
sobreviver no mundo e cumprir responsabilidades, mas por trás disso tudo,
sempre fui escritor. É aquela coisa de tempo integral. Você é escritor enquanto
trabalha na indústria, ou cuida da casa e dos filhos. É escritor quando bebe um
vinho ou uma cerveja com os amigos em algum barzinho da periferia, ou quando
vai ao cinema e teatro; na praia não tem como não ser escritor. Você acorda,
come, dorme escritor.
É engraçado quando alguém lê algum texto seu e diz que você
faz de forma tão fácil, que queria ser assim. Não é fácil, não na maioria das
vezes. Quando alguma ideia te pega de jeito é capaz de ficar atormentando
completamente os seus pensamentos e sentimentos. A insônia vem com a ideia que
não se importa se tem que trabalhar no dia seguinte, logo cedo. E acompanha
você no banho e no banheiro, se esfrega na sua frente enquanto tenta ler os
relatórios do dia, se embrenha nas palavras que escreve. Exige a sua atenção
até que você cede e começa a escreve-la, então ela diz que não. Faz um doce,
finge que está magoada com o seu descaso, mas não o deixa seguir em frente. Uma
vez que conquiste a sua atenção, é preciso algo muito forte para fazê-la largar
a sua alma.
Há vezes em que é fácil, e as coisas fluem de forma tão
solta e maravilhosa que se sente pleno e transbordante. Orgástico, diz um amigo
escritor. E assistimos o filme que vai se desenrolando cena a cena na nossa
frente em uma exclusiva apresentação, inédita. E nos envolvemos de uma forma
tão doce que desejamos levar essa experiência para o mundo, dividir com todos
que queiram participar dela, falar ansiosamente sobre ela, torna-la imortal
para que qualquer pessoa no universo possa usufruir daquele sentimento de união
com a Ideia.
É por isso que escritores precisam de público, para
compartilhar aquele momento único com outros e torna-lo ainda maior. É como
descobrir um lugar lindo, de beleza indescritível sem ter ninguém por perto.
Dividir as alegrias da escrita com os leitores é reviver novamente a mesma
alegria, a cada leitor que as acompanha, multiplicando o prazer que já se teve.
Claro que um escritor pode escrever apenas para si mesmo, e o faz muitas vezes,
mas a realização só vem quando há um público para repartir essa união de almas.
Esse é o verdadeiro motivo dos escritores não conseguirem
simplesmente deixar de ser escritores, nem quando enlouquecem ou se perdem, nem
quando vendem todos os móveis da casa para investir em um livro novo que, desta
vez, fará algum sucesso. Ser escritor é ter uma alma ancorada em vários mundos
que a puxam em um cabo de guerra sem tréguas, é sofrer um parto em cada obra,
desejar que cresça e se fortaleça com os atributos que pôde lhe dar na gestação
e consiga enfrentar o mundo e se realizar por inteiro.
Ser escritor é morrer em cada final, é viajar até na
maionese sem sair do lugar e ainda assim ter a experiência mais maravilhosa da
sua vida, até aquele momento, e não querer deixar ir, mas desejar a próxima com
a mesma intensidade. É rasgar-se por completo e tiras, só para tentar juntar tudo
de novo e de novo em uma outra configuração que, desta vez, talvez, seja a
certa.
Ser escritor é jurar por todas as letras que jamais vai
voltar a se desesperar por causa dessa maldição. Que vai se libertar
completamente e fechar a porta a qualquer ideia que tente arromba-la. É encher
a cara de qualquer entorpecimento para poder resistir bravamente até o fim e
pôr um ponto final nisso tudo porque já não aguenta mais.
E então ser acariciado com palavras e saber,
definitivamente, que não irá cumprir jamais o prometido, porque, como lhe foi
dito “Você é exatamente o que escreve”.
Danny Marks
Gostei muito desta crônica -ser escritor parece ser mal crônico, mas nem por isso o mal é de todo mau...
ResponderExcluirParabéns - cada bom texto é um conseguimento!
Obrigado Susana, ganhei a semana com o seu comentário. Este texto foi daqueles "fáceis", há verdades que simplesmente tornam a nossa vida mais leve. Achei que deveria compartilhar com os leitores para que pudessem ter contato com o outro lado dessa relação e se sentirem abraçados também. ;-)
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