Há
duas coisas que sinto muita falta na alma quando não as tenho por perto: o sol
e o mar. Talvez por ter vivido toda a minha história recente junto a esses dois
ícones que trago comigo, poucas vezes me ausentando por muito tempo e sempre
sentindo falta, me acostumei a usufrui-los quase de forma natural. Sem
excessos, porque, como já me lembrava a minha falecida avó, em sabedoria
equiparável e confirmável por muitos sábios mais antigos, a diferença entre o
veneno e o remédio é apenas uma questão de dose.
Então,
sempre que me permito, sigo para a praia com um bom livro e alguns vícios à
mão, para aquecer o corpo e a mente ao som da melodia constante e embaladora de
sonhos.
Ainda
que não tenha sido para meu ócio exclusivo, coincidentemente o prefeito da
cidade onde moro mandou instalar excelentes e confortáveis bancos públicos no
belo jardim que beira a longa faixa de areia, sendo-me alternativa para os dias
em que não se justifica ficar tão mais próximo ao mar com suas ondas quentes e
ventos refrescantes.
Em um
dia desses em que a preguiça de levar a cadeira de praia e me postar na areia
sob um guarda-sol a fazer-me sombra à leitura tornou-se particularmente intensa,
sentei-me como digno usuário do recurso público disponível, a aproveitar as
delícias divinas que a luz vinda de longe, até de outros tempos pelo que me
consta nos parcos conhecimentos que acumulei sobre o assunto, e me dispus ao
reconfortante emergir nas tramas e intrigas que tanto fascinam quando nos
sentimos seguros ao acompanha-las.
Em um
banco próximo, no entorno do mesmo pedaço de jardim cercado de calçamento por
todos os lados, recostava-se um outro cidadão com um olhar tão gasto quanto a
pele que lhe recobria o corpo ereto, mesmo quando sentado, lembrando-me um
Drummond reencarnado em uma bermuda acompanhada de camiseta e chinelos de boa
marca.
Enquanto
que meus vícios não incomodem os mais próximos, acerquei-me do imaginário que
muitas vezes me rouba a percepção da realidade, ainda que, no processo, acabe
por aguçar a mesma nos momentos em que não lhe é exigida uma atenção
direcionada para outros fins que não o fugir desta.
Portanto
não sei ao certo afirmar em que momento ou de que forma se iniciou um diálogo
paralelo com um personagem que, vindo como o vento, balançou as folhas,
sacudindo as palavras em que me concentrava.
Péssimo
hábito, diriam os mais puritanos, de ficar ouvindo conversa alheia. Mas, por
esquecimento, não por qualquer outro motivo justificável, não trouxera os
tampões de ouvido que atualmente se usam para abafar com alguma trilha sonora
exclusiva os ruídos do ambiente em que se pretende estar. Sendo assim, foi-me
impossível não ouvir as palavras que me espantaram qualquer atenção que pudesse
dedicar à ficção que muito me agradava, por estar a realidade em tom tão alto
que se tornava clara como uma manhã nublada de sol.
—
Tinha mesmo era que voltar a ditadura para dar jeito nessa bandalheira toda.
Uma revolução e colocava-se as coisas no lugar. Ainda que alguns inocentes
morressem, justificava-se com o progresso.
Reclinei-me
como a fugir dos resíduos poluentes do meu vício a queimar lentamente nas mãos
e ajeitei os óculos para ver melhor o articulador de abismal, de tão profundo,
pensamento. E para minha surpresa, se tanto, não era o pergaminho vivo de
Drummond que proferia as sonoras palavras, mas um lustroso e encorpado Adônis,
quase tão vestido quanto um Davi de Michelangelo empunhando as correntes que
continham Cérbero fielmente guardando as portas do calçadão, ou talvez, apenas
o imenso cérebro eletrônico que trazia acoplado ao braço que lhe reduzia proporcionalmente o tamanho.
Por
segundos tive pena do poeta pigmentado, sujeito a intempestiva intimidação
hormonal, apesar de sua postura engessada em uma altivez frágil de castelo de
areia que já vira muitas ondas a arrebentar na costa com toda sorte de refugos
que o mar regurgitava enojado. Poucos segundos, eu disse, pois foi o tempo que
levou para apresentar a voz sem um tom a mais, ainda que perfeitamente audível
aos ouvidos atentos que acabaram de conquistar.
—
Diga-me, senhor. Considera a pessoa com quem tem um relacionamento amoroso,
inocente? Talvez uma filha, ou irmã? Não lhe digo mãe ou outro parente, mas
quem sabe alguém com quem tenha uma relação de respeito e admiração?
— Como
assim? O que quer dizer com isso?
—
Pergunto-lhe apenas como preparação para a verdadeira curiosidade que me assola
neste momento. Qual dos inocentes que supostamente conhece, gostaria de ver
mortos para que tal progresso voltasse a existir?
— Está
me ameaçando? Não estou entendendo onde quer chegar.
—
Realmente não parece estar entendendo. Acalme-se, não lhe faço ameaça maior que
a que o senhor mesmo representa para si. Deixe estar, creio que não vai se
recordar disso amanhã, como não se recorda sequer de quem fui, e ainda sou.
E,
levantando-se com insuspeita flexibilidade e energia, foi-se embora em passo
compassado e firme, aquele fantasma do passado. Não antes de piscar-me os olhos
claros e sorrir com humor irônico ao deixar-me aos cuidados das aberrantes
construções modernas que poderiam até ser consideradas intervenções artísticas,
se algum apreço cultural despertasse.
Desde
então, sento-me em outro ponto deste aprazível lugar onde moro, mas não antes
de verificar o entorno, que a cada página virada é revisto para identificar se,
inadvertidamente, algo terrível está para acontecer. E só então retorno para as
tramas e intrigas seguras da fantasia.
E aos
que queiram me perguntar sobre quem seria a tal figura de aparência
insignificante que desafiou o gigante ciclópico, quero deixar claro que longa
e exaustiva pesquisa tive que fazer nos anais da história e, por fim, acabei
por decidir-me que há coisas que é melhor que fiquem onde estão, no passado, ou
no máximo se tornem ficção na mente de algum escritor, para a segurança dos que
amam apenas ler em paz.
Danny Marks
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